Vasculhando a biblioteca, encontro antigos livros de ficção científica, publicados em coleções com nomes como “Argonauta”, “Trevo Negro”, “Pêndulo” e “Livro B” nos anos 50, 60 e 70. Altamente sedutores, como percebo ao me deixar envolver pelos conteúdos e ir quase perdendo de vista o foco desta crônica.
O fato é que, ao folhear e cheirar as páginas de As Areias de Marte, de Arthur C. Clarke, publicado em 1970 pela Coleção Argonauta (Editora Livros do Brasil, de Lisboa), dou de cara com a seguinte advertência: “No seu próprio interesse, prezado leitor, verifique se este livro mantém o lacre branco que sela algumas de suas páginas; neste caso, abra-o, por favor, como abriria um livro não guilhotinado, isto é, com uma faca, até com um simples cartão, e assim não rasgará as folhas. Se o livro estiver todo aberto rejeite-o, pois é indício de que já foi lido. Defenda a sua saúde não manuseando livros usados”.
Um leitor das antigas me contou que, na época, eram comuns livros lacrados
Aviso de tragédia grega. Não é sempre, afinal, que a gente encontra um volume com alerta de risco biológico. Podia ser até uma sacada literária metatextual avant la lettre, mas, como descobri ao examinar outro volume da coleção, não era. No início dos anos 70, a Livros do Brasil pregava a tese sanitarista do “um homem, um livro”. Se a regra tivesse prevalecido, aliás, não haveria bibliotecas ou sebos, tampouco o salutar e sempre ingênuo hábito de emprestar livros.
Falando a respeito com um leitor das antigas, ouvi que, na época, eram comuns livros lacrados: alguns, em especial policiais, tinham o capítulo final protegido por uma cinta para que nenhum gaiato lesse antes e saísse espalhando que o mordomo era o culpado; outros, esotéricos, apelavam para o selo em nome do hermetismo; outros, enfim, se guardavam por conta do conteúdo pornográfico – se apareciam rasgados, é porque algum piá pançudo já andara por lá. Recurso evidentemente mercadológico, pautado na psicologia moral do mistério, pecado e revelação: em sua fragilidade, a sentinela de papel grita pela transgressão.
Não no caso do alerta literário biológico, que se baseava no terror da contaminação ou, em termos mais chãos, na evocação imagética de alguém espirrando sobre o livro que você emprestou, lambendo os dedos antes de virar as páginas ou manuseando-as depois de uma noite dormida com as mãos sob as cobertas. Para alegria geral da humanidade, dos ácaros e dos fungos, a ideia não vingou. Mesmo assim, porém, ela faz pensar – e concluir que o melhor é não pensar nisso.
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