“Do jeito que está, não dá para continuar”, avisa a pesquisadora Roseli Boerngen de Lacerda, do curso de Farmacologia da UFPR, uma das maiores autoridades paranaenses em políticas antidrogas. Ela soma 30 anos de estudos na área e atividades desenvolvidas na Secretaria Nacional Antidrogas e junto à Organização Mundial de Saúde (OMS). Roseli parte de uma evidência: o modelo de repressão ao uso de entorpecentes fracassou, com todas as pompas.
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Profissionais de saúde que atendem os dependentes nas ruas dizem que trabalho dá resultado, mas não arriscam veredito sobre a descriminalização
Leia a matéria completaEstão aí para comprovar a violência epidêmica, a confusão entre traficantes e usuários, a nefasta proximidade dos adolescentes e o mundo tráfico. “Admiro o Supremo Tribunal Federal estar discutindo o assunto”, festeja. Não faz segredo: sua torcida no voto a voto dos 11 ministros do STJ é descriminalização das drogas para uso pessoal e legalização, já. “A medida não acabará com o tráfico, mas vai dar para saber quem comete o crime e sair à sua caça”, diz.
Pesquisadores, ativistas, representantes de instituições tendem a concordar com Roseli – “não tem mais como fazer vistas grossas”. Mas há senões: incomoda a confusão entre legalizar e “liberar geral”. Ainda não há um consenso sobre como funcionaria a descriminalização – dos impostos, aos locais de comércio, passando pelo controle de qualidade. Para a psicóloga Maria Virgínia Cremasco, coordenadora de Políticas Sociais da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFPR, o aumento do uso é fato e é preciso enfrentá-lo com políticas adequadas – ainda não amadurecidas. Daí ser contra a legalização – pelo menos até segunda ordem.
“Quem vai fiscalizar? Para o álcool tem bafômetro. E para a maconha? Onde poderá fumar? Só acima de 18? Temos muito a discutir.” Além dos labirintos próprios do tema, some-se o preconceito em que está envolto. “Quando a gente fala em descriminalização tem quem ache que vai ver um motorista fumando maconha na janela do carro”, ilustra psicóloga.
A segurança de uns, contudo, não é regra. Há um temor, não de todo infundado, de que depois de o STF votar a favor, o caos dê lugar à treva – sentimento que autoridades como Ana Cecília Marques – da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead) – não escondem. Ela faz parte dos “proibicionistas” – facção que prefere seguir a lógica do “na dúvida, não ultrapasse”.
Há também liberais nessa corrente: “Sou favorável à descriminalização, mas não à liberação. Dependemos de uma política de saúde, educação e segurança de verdade, com estrutura, com ênfase na prevenção”, posiciona-se a educadora Araci Asinelli da Luz – referência nesse debate. “A descriminalização do usuário deve respeitar regras sociais, como a restrição de uso em logradouros públicos. E a disponibilização das ocorrências para pesquisas, a fim de acompanhar a evolução da lei”, acrescenta.
De qualquer modo, será uma longa viagem. “Uma política desse porte nunca está pronta e acabada. Quem trabalha com dependentes químicos está sempre em construção”, pondera a psicóloga Kátia Akemi Nedopetalski, da Secretaria Municipal de Saúde.
“Bem ou mal temos a experiência de duas drogas lícitas – o álcool e o cigarro –, mais os psicotrópicos. A regulação não é boa em qualquer um dos casos. Em especial o álcool. Mas entendo que não vamos correr mais riscos do que já corremos. Não faremos com as demais drogas pior do que já fizemos até aqui”, observa Maria Virgínia – que, qual Araci, é a favor da descriminalização, mas contra a legalização, pelo menos enquanto não houver uma política clara.
Virgínia e Roseli Boerngen relativizam as preocupações apontadas por profissionais de saúde pública ouvidos para reportagem publicada ontem (15) na Gazeta do Povo. O medo do pessoal da saúde pública é que com a descriminalização a maconha seja consumida na escala do álcool e do crack. “É um raciocínio muito instantâneo – isso não vai acontecer se houver normas claras para o uso”, concordam. São raríssimos os dependentes de cannabis entre os 2,6 mil pacientes ativos dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Essa droga não leva à overdose. “A dependência é mais psicológica do que física”, observa Maria Virgínia.
Embora nem todos os profissionais de saúde pública ouvidos pela reportagem tenham se posicionado sobre a descriminalização, há altíssima concordância de que essa política incidiria sobre as unidades de saúde. Foram citados: o aumentando o número de dependentes, de acidentes de trânsito causados pelos usuários, agravamento do abandono escolar entre jovens e – a médio prazo – mais casos de esquizofrenia desencadeados pelo uso de entorpecentes. Para alguns, ainda, a facilidade de experimentar teria impacto negativo sobre a população mais vulnerável – como pobres que vivem em zona de tráfico.
“Sou contra todas as drogas, que fique claro. Elas causam um mal para a sociedade. Mas se o cara vai na Casa do Demônio comprar droga e fumar em casa, é uma decisão pessoal”, destaca Roseli Boerngen. Ela contra-argumenta: 1) cresce no país o consumo e a criminalidade relacionada às drogas – é preciso reagir; 2) o problema não é o usuário, mas o bandido – “esse sim pratica um crime, precisa ser identificado e deve ser punido”; 3) o indivíduo tem de ter liberdade de escolher e assumir os efeitos de sua escolha. Uma vez a droga legalizada, qualquer droga, o usuário será informado sobre sua procedência e qualidade; 4) uma política pública tem de se ocupar de policiar os que dirigem e usam drogas, a exemplo do que acontece com álcool e direção.
Quanto à tese de que a descriminalização aumentaria o consumo, Roseli discorda. Diz que não é o que acontece em países como a Holanda e Portugal. “Ao deixar de ser proibido, reduz-se o medo e mais pessoas se declaram, procuram ajuda quando perdem o controle. E isso tem de deixar de ser um problema de polícia para ser o que é, um problema de saúde pública”.
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