As regras mundiais para pesquisas com seres humanos poderão mudar neste ano. A última rodada de discussão pública sobre o assunto ocorre nesta semana, em São Paulo. Estarão em debate a partir de quarta-feira (20) alterações importantes, como a participação de crianças em estudos de medicamentos, e polêmicas, caso da ampliação do uso do placebo - substância inócua empregada para comparar resultados - nas avaliações científicas, além da garantia de acesso dos participantes das pesquisas ao que é estudado.
A Declaração de Helsinque, alvo das mudanças coordenadas pela Associação Médica Mundial, é considerada a Bíblia da pesquisa biomédica com seres humanos e surgiu em 1964 como resposta aos horrores cometidos por cientista engajados no nazismo. O documento, que orienta as normas dos países signatários, já passou por outras cinco revisões, a última em 2000, além de ter recebido notas de esclarecimento, a mais recente delas em 2004. No processo atual, o Brasil foi um dos países convidados a fazer parte do grupo técnico de revisão, ao lado de Alemanha, Japão, África do Sul e Suécia. As decisões tomadas nesta semana serão referendadas em outubro, na Coréia do Sul.
"São decisões que irão influenciar as pesquisas biomédicas em todo o mundo", afirma o gerente de Pesquisa Clínica do hospital Oswaldo Cruz, Gustavo Kesselring, um dos especialistas brasileiros que participam da revisão. "Os limites têm de ser discutidos pela sociedade", diz José Luiz Gomes do Amaral, também integrante do grupo e presidente da Associação Médica Brasileira, que promove na terça-feira (19) fórum preparatório sobre o tema.
Segundo Kesselring, o teste em crianças é um ponto importante porque, atualmente, boa parte das dosagens dos remédios são definidas com base em extrapolações das dosagens para adultos, o que gera riscos. Também em poucos estudos há participação de mulheres. A situação gerou nos últimos anos um movimento internacional pela inclusão dessas minorias nas pesquisas - no Brasil, já há regras para isso, assim como na Europa e nos EUA. "O excesso de cuidado levou a termos uma ciência só para homens", afirma Débora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, entidade que atualmente presta assessoria ao Ministério da Saúde sobre o tema e representará a pasta no debate.
PLACEBO
As discussões sobre a ampliação do uso do placebo dividem opiniões entre os que querem banir seu uso, aqueles que defendem a aplicação cuidadosa e os que querem a ampliação de testes com substâncias inócuas, explica Débora. "O problema é que um dos paciente sempre vai receber 'nada' como tratamento", destaca.
Resolução do início deste mês do Conselho Nacional de Saúde, órgão de controle social do Sistema Único de Saúde (SUS), defendeu o "uso moderado" do placebo - a decisão ainda não foi homologada pelo ministro José Gomes Temporão. O conselho também defendeu o acesso de todos os sujeitos de pesquisa aos melhores recursos terapêuticos. A discussão sobre acesso a produtos avaliados arrasta-se há dez anos e existem grupos que têm defendido posição contrária, de que se disponibilize só o adequado à realidade local.
De acordo com Débora, essa postura levou a indústria a testar, na década de 1990, subdoses do dispendioso coquetel antiaids em Uganda, apesar de estudos já terem estabelecido doses maiores e eficazes. A alegação, na época, foi que Uganda não poderia sustentar o tratamento mais caro e o País aceitou a pesquisa, por entender que era melhor do que não oferecer nada aos doentes. "Junto com o interesse da indústria, há o desespero da pobreza", afirma a pesquisadora.
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