Redescoberto, um artigo sobre a controversa fosfoetanolamina, publicado há 36 anos em um periódico científico americano, tem provocado inquietação entre oncologistas. Divulgado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, o estudo de 1979, de autoria de pesquisadores do Japão e dos Estados Unidos, relacionou a substância com o crescimento das células de câncer de mama em ratos.
No experimento, o objetivo dos cientistas liderados por Tamiko Kano Sueoka era descobrir as causas da proliferação das células malignas nos roedores. Um fator ativador do tumor foi isolado e identificado como fosfoetanolamina, composto químico orgânico encontrado no organismo de mamíferos, inclusive humanos. Ao buscar material sobre o composto na internet recentemente, o oncologista Stephen Stefani, do Hospital do Câncer Mãe de Deus, em Porto Alegre, se deparou com o texto.
“O que chama a atenção é o estudo apontar em uma direção totalmente oposta à de toda intuição que tem sido a base do apelo da fosfoetanolamina”, comenta o médico.
No Brasil, a distribuição de fosfoetanolamina sintética, desenvolvida por um ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos e ainda não testada clinicamente em humanos, vem motivando intenso debate que opõe médicos, pacientes e políticos. Um projeto de lei que libera o uso e a distribuição das cápsulas, antes mesmo de comprovada sua eficácia e segurança, foi aprovado com rapidez na Câmara dos Deputados e no Senado e aguarda agora a sanção da presidente Dilma Rousseff.
Centros de pesquisa escolhidos pelo governo federal acabaram de apresentar os resultados das primeiras verificações laboratoriais, ainda em fase pré-clínica, financiadas com verba do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação: baixíssima eficácia da substância no tratamento de alguns cânceres. Entre especialistas, as conclusões desanimadoras deixam pouca margem para se acreditar que a fosfoetanolamina possa ser eficaz em humanos.
Disseminou-se pelo país, nos últimos meses, a crença de que a “pílula do câncer” seria capaz de curar todos os tipos da enfermidade, o que motivou disputas judiciais e indignação entre os doentes que não conseguiram obter a droga. A ausência de estudos em humanos até o momento não permite concluir se a fosfoetanolamina é benéfica ou prejudicial – ou mesmo se há qualquer reação sobre tumores.
Resultados opostos podem ser sinal de alerta
- Agência RBS
Sérgio Roithmann, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), destaca que os testes dos pesquisadores da Universidade de São Paulo e dos pesquisadores estrangeiros utilizaram linhagens de células diferentes. Mesmo assim, na avaliação dele, os resultados opostos constituem um forte sinal de alerta.
“Essa droga, se é que ela é mesmo uma droga, precisa ser avaliada. Talvez em algumas células ela pudesse ter um efeito anticâncer, mas em outras poderia ter o efeito contrário. A experiência de São Carlos não mostra que a droga é anticâncer, nem a experiência do Japão mostra que ela é pró-câncer. O que as experiências provam é que mais estudos são necessários antes que se dê isso para seres humanos” defende Roithmann.
Uma recente análise, publicada no Journal of the National Cancer Institute, examinou o efeito placebo – em pesquisas de novas drogas, parte dos voluntários recebe uma substância inativa, para que se possa fazer uma comparação com quem está tomando o fármaco de verdade. Durante o período de avaliação, nem médicos, nem voluntários sabem se o remédio em teste é placebo ou não. Nesse estudo, as conclusões revelaram que houve redução da dor em 21% dos casos, melhora do apetite (8% a 27%), aumento de peso (7% a 17%) e até redução do tumor (3%). O componente emocional, observa Stefani, é poderoso.
“A fosfoetanolamina transcendeu a questão técnica e passou a ser ideológica e de paixão. O leigo aposta muito que vai ser algo de sucesso, que vamos nos livrar dos tratamentos tradicionais. Não queremos despedaçar a esperança das pessoas, é bem-vindo investigar quando há uma possibilidade de sucesso, mas não podemos atropelar a ciência”, afirma o oncologista.
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