Era 29 de fevereiro deste ano quando Sebastião foi ao banco pagar o boleto mais aguardado da sua vida. A primeira parcela do financiamento entre ele, o feliz proprietário do lote, e a Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab-CT), que após três décadas afirma ter conseguido desatar todos os nós que impediam a regularização dos terrenos no agora bairro Xapinhal. Duas quadras para baixo, na comunidade Nossa Luta, a situação é outra.
Os moradores pagaram a Cohab lá nos anos 1990, mas não viram a cor dos títulos – algo parecido ao ocorrido para os lados da Vila Verde, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Quando o assunto é regularização fundiária em Curitiba, cada caso é um caso. Em comum, apenas o fato de que nenhum deles é simples. Cada processo envolve burocracia e os interesses do município, moradores e proprietários.
Nos três anos e meio da gestão Gustavo Fruet, a Cohab diz ter resolvido a situação de pouco mais de 12 mil lotes, mas isso não significa que todas as famílias que moram neles já têm, em mãos, um título de posse. Para o próximo prefeito ou prefeita ficará o desafio de inserir pelo menos outras 54 mil famílias à chamada “cidade legal”.
Essas famílias moram em casas que não existem formalmente. No cartório, a planta do local onde estão inseridas muitas vezes mostra um vazio, sem nem um desenho de loteamento. Na vida real, quase uma em cada oito famílias curitibanas vive nas 257 áreas que a Cohab considera “passíveis de regularização”. Ou seja, esse número não corresponde ao total de áreas irregulares na cidade. Para casas em beira de rio, por exemplo, a ordem é de realocação.
A regularização, aos olhos do município, é apenas para áreas onde o loteamento como um todo se deu de forma desordenada. Em alguns casos, a divisão dos terrenos e a abertura de ruas foi feita pelos próprios moradores; em outros, o próprio proprietário loteou e vendeu as casas, mesmo sem ter a devida autorização do município para isso. De maneira geral e para efeitos de que caminho tomar para resolver o problema, a Cohab divide os lotes passíveis de regularização em quatro tipos: os públicos, os de empresas públicas, os privados (áreas ocupadas pelos moradores), e loteamentos privados (o próprio dono loteou irregularmente).
Por que regularizar?
Entre poder público e estudiosos, há um certo consenso de que regularizar é o melhor negócio para uma cidade. “Todos saem ganhando. Ele [o morador] com o título da propriedade, o poder público tem a possibilidade de arrecadar tributos, [nós, cidadãos como um todo] temos a cidade ordenada, com menos problemas de saúde”, destaca a promotora Aline Bilek Bahr, da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Curitiba. Nos lotes irregulares, a prefeitura sequer consegue recolher IPTU e taxa de lixo, por exemplo.
Se há uma instabilidade do ponto de vista jurídico, urbanisticamente estas áreas estão mais do que consolidadas. Afinal de contas, muitas comunidades estão há mais de dez anos estabelecidas. Em algumas áreas, como no Bolsão Formosa, são mais de 40 anos de ocupação. O que torna a tarefa de remanejar as famílias perto do impossível.
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Histórico
A situação chegou a este ponto porque Curitiba sofreu, ao longo de décadas, com uma “ocupação desordenada do solo”, sem a devida fiscalização, somada à falta de políticas públicas de habitação, explica Aline. “O gestor não buscou soluções, então as pessoas encontraram outra forma de ocupar áreas que eram vazios urbanos”. A cidade crescia em número de habitantes ao mesmo tempo em que grandes pedaços de terra não cumpriam sua “função social” de oferecer um lugar a eles, resume a arquiteta e urbanista Laura Bertol, professora da especialização em Direito à Cidade e Gestão Urbana da Universidade Positivo.
O próprio presidente da Cohab, Ubiraci Rodrigues, reconhece que restringir a política de habitação à construção de casas novas é um modelo insustentável. “Sempre entreguei apartamento e é emocionante”, diz ele, que construiu uma trajetória em habitação dentro da Caixa Econômica Federal, “mas dar o título [de posse da propriedade em que a pessoa já mora há anos] é muito mais.”
Agora e depois
Na atual gestão, a Cohab atuou em duas frentes. Das 12,2 mil regularizações contabilizadas, pouco mais da metade (6.723) foi em lotes comuns, privados, em vilas onde a companhia não tinha interferência. Destes, mais de 90% foram nos últimos dois anos. Não por acaso. Foi o tempo de acertar as contas com os proprietários e resolver as pendências cartoriais que impediam o processo de andar. Embora classificadas como “resolvidos” pela atual gestão, esses casos não correspondem, necessariamente, a “título de posse na mão”. Alguns moradores parcelaram o pagamento de seus lotes em 20 anos e só terão o documento definitivo lá no fim.
O Xapinhal está nessa conta dos “nós desatados” pela Cohab. São 1.738 unidades, regularizadas por decreto em outubro de 2015. Três meses depois, em janeiro, os moradores começaram a pagar a taxa administrativa da Cohab. Em fevereiro, veio o financiamento. Beneficiadas por decreto similar, as 1.171 famílias das vilas 23 de Agosto e Campo Cerrado não tiveram a mesma sorte. Empacaram no cartório, que exigiu a assinatura de todos os 25 proprietários da área, sendo que quatro estavam mortos. O problema já foi resolvido, e deve caminhar nas próximas semanas, segundo o presidente da Cohab, Ubiraci Rodrigues.
A outra metade das regularizações resolvidas pela Cohab nos últimos anos (5.596) corresponde ao fim da novela com os detentores dos Termos de Uso e Concessão de Solo (Tucs), que foram comercializados pela companhia nos anos 1990. À época, a companhia vendeu os títulos em áreas que viviam na iminência de um despejo. Era como uma permissão de permanência, sem que as áreas fossem devidamente regularizadas.
Quando terminaram de pagar, famílias de áreas como a vila Nova Esperança, no Sabará, descobriram que os Tucs não davam direito à posse. O Ministério Público do Paraná (MP) entrou com uma ação, e os termos foram considerados nulos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2010. Apesar disso, a empresa diz ter considerado o desembolso das famílias nos novos arranjos. Aqueles detentores dos Tucs que já tinham quitado o terreno não tiveram que fazer isso de novo no processo de regularização. Já para aqueles que pagaram algumas parcelas, por exemplo, foi feito um desconto equivalente ao valor quitado.