Não é preciso ter nascido na década de 1970 para saber de cor pelo menos um trecho de “Vida de negro” (lerê-lerê) – canção de Dorival Caymmi, tema do folhetim Escrava Isaura. Marcou gerações, pelo romantismo e pela surpresa. A história mostrou a milhares de brasileiros que os tempos da Escravidão podiam não ter sido exatamente como mostravam os livros da escola. “Uma escrava branca?”, perguntava-se, no sofá da sala. Vida não é novela, como se sabe, mas já era tarde: as suspeitas sobre o período escravocrata estavam plantadas e assim permanece.
Infográfico: veja no mapa os principais pontos da Curitiba negra
A pesquisadora Joseli Nunes Mendonça, do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, explora o mesmo conceito, com outras palavras. Costuma-se pensar aquele momento como uma “categoria histórica”, do Norte ao Sul, desde o século 16, ignorando que houve tantas escravidões quanto regiões do Brasil. É palavra no plural. “A escravidão foi vivida de forma muito distinta nos mais diversos lugares. Cada um com uma determinada especificidade”, salienta.Essa percepção explica muita coisa – em especial no que se refere ao Paraná, estado em que a negação do trabalho escravo não só fez escola como ganhou diploma de bacharel.
“Aqui foi diferente. Isso não quer dizer que não existiu”, resume Joseli, sem deixar de invocar a obra do historiador Romário Martins e o livro Um Brasil diferente, de Wilson Martins – dois dos mais conhecidos polemistas da História da Escravidão no Paraná, justo por colocá-la de lado.
Joseli exemplifica o princípio da confusão: enquanto uma fazenda de Campinas, em São Paulo, tinha 200 negros, uma paranaense era afortunada se chegava a ter 20. Essas quantificações – práticas comuns num período da historiografia – tiveram um efeito nefasto sobre o imaginário paranaense. Do número pequeno de escravos se deduziu que a Escravidão aqui não teve relevância.
Eis o engano. A estudiosa comenta relatos sobre cativos do Paraná que andavam a cavalo e usavam armas na cintura. Era uma particularidade, que não se verificava em outros lugares. Em vez de trabalhar em grandes fazendas de café, aqui cuidavam de pastos e cruzavam grandes áreas de mata. “Podiam fugir”, diria qualquer leigo no assunto, diante do que parece inexplicável. Havia, claro, negociações.
“Uma coisa é inegável – a experiência histórica da Escravidão no Paraná diverge o vivido nas áreas de economia agroexportadora, como o Nordeste. O desafio é perceber essa especificidade”, observa Joseli, sobre a aparente autonomia dos escravos do Paraná. “Numa região de pecuária, não havia como ter esse escravo se não fosse assim. Como é que ele iria fazer o trabalho sem poder andar a cavalo?”
É da missa a metade, como se dizia. Essas e outras particularidades da Escravidão no Paraná exigem fazer perguntas, algumas delas bastante difíceis de responder – uma tarefa que tem empolgado uma novíssima geração de pesquisadores. Além de Joseli, devem ser listados historiadores como Jhonathan Souza, Jorge Santana, Noemi Santos da Silva e Thiago Hoshino, assim como profissionais de outras áreas, como a antropóloga Geslline Giovana Braga – uma das autoras de Maria Bueno: santa de casa, publicado em 2011.
Esses e outros se debruçam sobre temas não propriamente intocados, mas que parecem ter recebido pouca ênfase ou propagação – são exemplos o negro no futebol paranaense e as professoras negras, estudos de Jhonatan e Noemi, respectivamente, para citar dois.
À revelia da popularidade da “teoria do branqueamento” no Paraná – espécie de rejeição política do negro, como forma de se “vender” como região europeia, um Brasil branco – são muitos, e profundos, os estudos sobre Escravidão no estado. É um campo consolidado, desmentindo o senso comum de que o tema foi pouco estudado – justo por não oferecer desafios.
O historiador Carlos Roberto Antunes, morto em 2013, deixou um importante material sobre o preço dos negros. A historiadora Márcia Graf – autora de Imprensa periódica e escravidão no Paraná (1981) – traçou um panorama até hoje insuperável: explorou anúncios de escravos fugidos em jornais, como o 19 de Dezembro; a ação das sociedades de apoio aos negros, de modo a lhes custear a liberdade; os grupos locais que trabalhavam pela Abolição. Some-se à lista a contribuição de Sebastião Ferrarini, do Círculo de Estudos Bandeirantes , e as pesquisas da historiadora Ana Maria Burmester, da UFPR; Eduardo Spiller Pena – um marco, agora ligado à Unicamp; Gustavo Gutierrez, hoje na USP, sabendo que a lista não acaba aí.
- “Hospital de bonecas” já recuperou 75 mil brinquedos
- O Paraná segundo os Rebouças
- Santa Casa, 135 anos salvando vidas
- ONG quer recriar passos de personagem bíblico
- FCC estuda criar museu de percurso da história negra em Curitiba
- FCC estuda criar museu de percurso da história negra em Curitiba
- FCC estuda criar museu de percurso da história negra em Curitiba
“Eu também me pergunto por que essas pesquisas não são tão conhecidas”, observa Joseli Nunes Mendonça, ocupada a dar a devida escala ao “fenômeno de popularidade” dos novíssimos estudos sobre os escravos no Paraná. Ela rechaça a ideia de pioneirismo, o que seria um desrespeito aos antecessores. Mas o fato é que se trata de uma onda, no melhor sentido da palavra. Qualquer dúvida basta ir às domingueiras na Sociedade Operária 13 e Maio – ali temas como os negros letrados e as sociedades abolicionistas encontram espaço em meio ao samba e às rodas de capoeira
“Os tempos são mais favoráveis”, observa o historiador Fabiano Stoiev, professor do Colégio Estadual Bento Munhoz da Rocha Netto, no Pilarzinho, e parte da trupe que está tirando a poeira “dessa página infeliz de nossa história”. Para Stoiev – que tem no currículo livros sobre a Rede Ferroviária e sobre a Rua Riachuelo – o sistema de cotas mudou a cor do ensino superior – trazendo à baila os debates.
“Basta reparar nos cartazes nos corredores da universidade, alguns bem provocativos. Leia o que invocam - os problemas com os quais os negros convivem há muito tempo”, observa Joseli. Colabora para tanto a própria mudança de postura das instituições públicas de ensino superior – cada vez mais envolvidas em projetos com outros setores da sociedade – e a lei que prescreve os estudos de história afro e indígena, o que criou novas demandas. “A UFPR está saindo dos muros”, comemoram.
O advogado Thiago Hoshino, paulista, 28 anos, é uma das provas disso. Ele saiu dos corredores da UFPR, mas milita nos direitos humanos, conhece cada palmo dos problemas da regularização fundiária no Paraná e, por sorte, interessou-se pela questão negra no estado dito branco. Seu mestrado sobre a cultura jurídica em torno da liberdade, no século 19, e a luta dos negros por alforria, é primoroso. No embalo do estudo, acabou “coletando fungos” nos arquivos da Sociedade Beneficente Operária 13 de Maio – tida como a terceira mais antiga do Brasil. Achou ouro – assim como os outros – o que dá um frescor aos estudos.
Apesar do nome, a “13” teria sido fundada dias antes da Abolição da Escravatura. Pouco de suas atas tinham sido exploradas – apesar da sugestão de que havia fumaça e fogo neste material, como se pode ver nos estudos de Márcia Graf. Difícil dizer por que nos últimos 30 anos a timidez regeu esse debate. A verdade é que cada vez que Hoshino narra o que ele e outras pesquisadoras descobriram, a sensação é de abrir um livro fechado há décadas.
O mesmo se diga de Stoiev, que preparou material didático para escolas, junto a graduandos de História da UFPR. Do esforço desse programa de cooperação entre a universidade e a rede estadual de ensino médio, saiu meio que sem querer um roteiro com dez pontos de Curitiba que não têm a ver com poloneses ou alemães – a exemplo das antigas Linhas do Pinhão. Mostra sobretudo lugares onde negros – forros ou não – negociavam, buscavam água. E estudavam.
Sim – nos porões da universidade dormiam estudos que mostravam escravos e ex-escravos letrados, com capacidade de interpretar leis e entrar na Justiça contra seus senhores. Cai por terra uma série de impressões ingênuas sobre o período. Já não era sem tempo.