Os hospitais filantrópicos que atendem o Sistema Único de Saúde (SUS) em Curitiba vivem mais um momento de crise financeira. Em janeiro deste ano, a prefeitura de Curitiba normalizou o repasse de verbas, após uma série de atrasos e auditorias, nos últimos anos. Mas dívidas acumuladas e gastos com juros bancários que ultrapassam a casa dos R$ 380 milhões colocaram as instituições na corda bamba na hora de fechar a planilha de gastos. Além disso, os filantrópicos alegam que a disparidade entre os valores gastos e arrecadados com os pacientes do SUS cria um crescente buraco financeiro. Corte de leitos, demissão de pessoal e falta de pagamento a fornecedores estão entre as possíveis consequências.
Atrasos nos repasses deixam juros bancários como herança
Após dois anos de atrasos e instabilidades nos repasses dos recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) aos hospitais filantrópicos, a prefeitura de Curitiba normalizou o pagamento, em janeiro deste ano.
Leia a matéria completaHospital São Vicente pode fechar o ano com 160 demissões
Em crise financeira, as duas unidades do Hospital São Vicente, em Curitiba, podem fechar o ano com mais de 160 demitidos. Cem funcionários já foram mandados embora, nos meses de abril e maio, de diversos setores, segundo o diretor superintendente do hospital, Marcial Carlos Ribeiro.
Leia a matéria completaOs filantrópicos respondem por 42% das internações ambulatoriais no SUS em todo o Brasil e 46,96% em Curitiba (uma média de 1,3 mil internações ao mês), segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes), do Ministério da Saúde.
Os oito hospitais da rede conveniada receberam, até meados de julho, R$ 217,1 milhões em repasse da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), responsável por gerir as finanças do sistema (que reúne verba das três esferas administrativas). Mas é pouco dinheiro, dizem os dirigentes.
No Hospital Pequeno Príncipe (HPP), cerca de metade dos R$ 10 milhões arrecadados mensalmente vem dos repasses públicos. O SUS representa 63% dos atendimentos feitos no hospital pediátrico. No Hospital São Vicente, o SUS representa 40% dos pacientes e 22,5% do orçamento.
Já no Hospital Erasto Gaertner, 93% dos pacientes são do SUS. Por outro lado, os 7% vindos de planos de saúde e particulares respondem por 25% das receitas da instituição.
Segundo levantamento da Federação das Santa Casas e Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos do Rio Grande do Sul, para cada R$ 100 gastos com pacientes SUS, os filantrópicos recebem R$ 58, na média nacional.
O Ministério da Saúde contesta o subfinanciamento. Argumenta que o repasse aos hospitais filantrópicos aumentou em R$ 5 bilhões, desde 2010. O valor reúne repasses feitos por procedimento e incentivos vinculados a metas das instituições. Pelo cálculo do governo, o montante representa 57% de aumento; acima do reajuste no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) no período, de 45,04%; e da chamada “inflação da saúde”, de 47,73%, segundo o índice Fipe Saúde, da Fipe.
Crise
O endividamento financeiro dos hospitais filantrópicos é um dos grandes problemas hoje do setor, na avaliação de Mário Scheffer, professor de Políticas de Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Muitos destes hospitais são “vítimas do subfinanciamento”, do “desequilíbrio financeiro nos contratos e convênios firmados com os gestores do SUS”, pondera. Em outros, o problema é a má gestão. “Os filantrópicos só vão sair da crise quando combinarem soluções internas (de gestão) com soluções que não dependem deles, pois têm a ver com decisões políticas para financiamento público mais adequado do SUS”, explica Scheffer. Ele ressalta que a rede conveniada é fundamental para a existência do SUS.
Além de darem conta de mais de 40% das internações do sistema, em mais de mil cidades brasileiras as Santas Casas são as únicas instituições a oferecerem leitos ao SUS.
Modelo de financiamento do SUS é arcaico, avalia especialista
Herança do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), o atual sistema de precificação da saúde é incompatível com o serviço atendido, na avaliação da professora do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Maria Luiza Levi Pahim, especialista em orçamento na área de saúde.
“A tabela, como unidade de medida, não tem uma lógica. Ela tinha, mas foi perdendo, é muito fragmentada. É como se você misturasse numa mesma lista coisas muito grandes e muito pequenas, uma exame de sangue, valorado em centavos, e um atendimento de queimado, que é super complexo, caro. Isso é um problema, porque chega uma hora que não tem mais lógica. O paciente está num procedimento, como uma cirurgia múltipla, ou fragmentado em milhões de procedimentos”, explica.
A fragmentação torna impossível fazer um reajuste linear, aumentando todos os procedimentos sob um mesmo índice, explica Maria Luiza. No modelo norte-americano, por exemplo, a precificação leva em conta a complexidade de cada diagnóstico e as características de cada paciente. A fratura de um idoso diabético têm valor diferente da de um adolescente sem nenhuma doença crônica, e por aí vai.
A tabela foi desenvolvida no início dos anos 1980, quando o governo precisou “civilizar” a compra de serviços em saúde dos entes privados. O Inamps funcionava como uma espécie de plano de saúde público, em que trabalhadores com carteira assinada e outros beneficiários tinham os custos de seus tratamentos - feitos em hospitais privados - custeados pelo governo.
De lá para cá, muita coisa mudou. O governo investiu na rede própria e na descentralização dos serviços hospitalares, focando em equipamentos da atenção básica. Os incentivos, que “correm por fora” da tabela, foram instituídos, e estados e municípios passaram a ser obrigados a fazer investimentos de 12% e 15%, respectivamente, em saúde, com a aprovação da Emenda à Constituição 29, que consolidou o SUS, em 2000.
Por parte do Ministério da Saúde, foram priorizadas “formas mais unificadoras do cuidado” em saúde, do final dos anos 1990 para cá, segundo a pesquisadora. Só que esta lógica esbarra no sistema tripartite, em que cada esfera paga um pedaço do serviço.
O resultado é que não há uma forma consensual os gastos de um estabelecimento em saúde. “Não há uma referência”, diz Maria, o que torna difícil avaliar onde estão as distorções para mais ou para menos no financiamento desta área.
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