Vizinhos dos prédios de apartamento ao redor jogam garrafas de cerveja vazias pelo buraco no telhado da antes majestosa igreja. Pombos voam pela nave cavernosa, seu excremento se acumulando no chão. Um vigia protege tesouros de ladrões que rondam os prédios abandonados da cidade. A neoclássica Igreja Positivista do Brasil, no Rio de Janeiro, com suas colunas imponentes e um letreiro enigmático acima da entrada proclamando “os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”, era um antigo símbolo chamativo na Rua Benjamin Constant, perto do centro velho da cidade.
Hoje em dia, a igreja marcada com grafites, caindo aos pedaços, cujos fundadores livres-pensadores ajudaram o Brasil moderno a surgir das cinzas de um império, é tão somente mais um emblema de como o Rio de Janeiro negligencia seu passado, permitindo que a grandeza vire ruína.
“Os fiéis antes se reuniam aqui para debater ideias incendiárias nascidas em Paris, a cidade santa dos positivistas. Tragicamente, nossa instituição agora se encontra em estado de abandono, como se a história fosse algo que o Brasil devesse desdenhar”, diz Christiane Souza, 48 anos, diretora de patrimônio da igreja.
Na verdade, poucos brasileiros conhecem direito o positivismo, a religião secular que se espalhou pelo Brasil na segunda metade do século XIX pelos seguidores do filósofo francês Augusto Comte, exceto, talvez, que dois de seus princípios – ordem e progresso – continuam bordados na bandeira brasileira.
Em uma definição breve, a filosofia do positivismo de Comte buscava reorganizar a sociedade em torno do conceito de que explicações derivadas da ciência deveriam ser estimadas como uma maneira de compreender o mundo. O positivismo atraiu admiradores em lugares como México, Reino Unido e Turquia. Para dar um passo além, Comte criou uma religião para espalhar suas crenças.
Alguns aspectos de sua Religião da Humanidade se pareciam com o catolicismo romano. O interior da igreja decadente do Rio ainda passa a sensação de uma catedral austera, ainda que seja uma onde as cerimônias tenham parado depois que uma parte do telhado caiu após uma tempestade em 2009. Os fiéis exaltavam um ícone feminino similar à Virgem Maria e baseado em Clotilde de Vaux, por quem Comte foi apaixonado.
Mas Comte também disse aos seguidores para adorarem a humanidade, não Deus, e criou um novo calendário. Ele começava no ano de 1789, quando uma multidão tomou a Bastilha num momento decisivo da Revolução Francesa; ele batizou os meses com grandes nomes históricos como Gutenberg, Carlos Magno, Shakespeare e Dante.
Império escravagista governado por uma monarquia durante a maior parte do século XIX, o Brasil foi um terreno fértil para a Religião da Humanidade. Entre os partidários francófilos da fé estavam figuras centrais do período tumultuado após o golpe de 1889 que derrubou o imperador brasileiro, tais como Cândido Rondon, o explorador que mapeou regiões remotas da floresta amazônica com Theodore Roosevelt.
Em outros países, o lugar onde tais luminares se reuniam poderia ser cultuado hoje em dia como um museu. Não no Rio, onde as autoridades inauguraram, em 2015, um luxuoso Museu do Amanhã para contemplar o futuro, enquanto prédios Belle Époque da cidade desmoronam em estados variados de decadência.
Ainda assim, Giovanni Fernandes, guardião da Igreja Positivista, às vezes deixa um ou outro visitante dar uma entradinha, oferecendo um vislumbre de um passado não tão distante do Brasil. Espalhados pela entrada estão panfletos seculares em português e francês que os positivistas antes imprimiam no porão.
Os títulos dos livretos em decomposição refletem os assuntos, lutas políticas e preconceitos que consumiam o Brasil: “Vacina obrigatória e a política da República”, “A questão da fronteira entre Brasil e Argentina”, “Em defesa dos selvagens brasileiros”.
Uma sala com escada em caracol contém várias esculturas cobertas de poeira, incluindo uma estátua de Clotilde de Vaux segurando uma criança. Pinturas em decomposição na parede parecem descrever aristocratas em roupas com estilo europeu perdidos em reflexão filosófica.
De vez em quando, estudiosos emergem da igreja com descobertas cobiçadas, como quando uma gaveta bolorenta recheada com papéis velhos produziu os esboços originais da bandeira do Brasil, que os positivistas criaram contra as objeções de rivais que desejavam uma baseada na dos Estados Unidos.
“Existe tanta poeira e sujeira por aqui que, às vezes, digo aos visitantes para trazerem uma máscara cirúrgica”, conta Fernandes, 57 anos, o solitário vigilante da igreja. “Costumam perguntar se o prédio é assombrado e eu digo: ‘Não, eu não trabalharia com fantasmas’.”
Historiadores dizem que o vazio misterioso da estrutura, que foi influenciada pelo Panteão de Paris, vem do contraste com o papel um dia ocupado pela Igreja Positivista como ponto de encontro de sábios buscando levar o Brasil à idade moderna.
Os positivistas assumiram posições progressistas numa série de assuntos, levando a cabo cruzadas contra a corrupção governamental e a favor de uma legislação para aprovar as condições de trabalho para os brasileiros pobres. Em confronto com a oligarquia entrincheirada, os positivistas fizeram campanha pela abolição da escravidão em 1888.
José Murilo de Carvalho, 77 anos, historiador brasileiro, diz que os positivistas desprezavam tanto a escravidão que proibiam os colegas abastados de terem escravos e promoviam a glorificação de Toussaint L’Ouverture, líder da revolução dos escravos haitianos.
“Imagine como aquilo era visto num país escravagista à beira de um ataque de nervos a qualquer menção a rebeliões. Os positivistas eram extremamente avançados para sua época”, diz Carvalho.
Mesmo assim, embora a Religião da Humanidade de Comte tivesse mais influência no Brasil do que em muitos outros países, a fé nunca se disseminou entre os brasileiros além de um grupo central de partidários, estimados em centenas no Rio e nas cidades sulistas de Porto Alegre e Curitiba.
Segundo estudiosos, os possíveis convertidos rechaçavam aspectos como a proibição a um novo casamento depois da morte do cônjuge e o tratamento dispensado às mulheres pela religião, que deveriam receber salário por criar os filhos, mas eram proibidas de procurar trabalho fora de casa.
E também havia a sensação de espanto por determinadas posições de Comte, como sua crença de que o cérebro é um órgão por meio do qual os mortos influenciam os vivos – donde a inscrição enigmática que antes adornava o portão da igreja.
Até uma década atrás, um grupo minguante com cerca de dez fiéis ainda se reunia no local para missas, antes de o telhado desabar. Agora, os descendentes dos devotos doam tempo e fundos escassos para impedir que o prédio caia de uma vez.
“Temos milhares de livros raros aqui, sem falar em estátuas, pinturas, cartazes, livros contábeis, correspondência e sabe-se lá o que mais”, afirma Christiane Souza, a diretora de patrimônio, cujo pai, Danton Voltaire Pereira de Souza, chefiou a igreja até a morte em 2014.
“Eu me entristeço por pensar que podemos estar entre os últimos positivistas”, diz ela, apoiando-se no andaime de uma tentativa abandonada de restauração. “Às vezes parece que estamos destinados ao esquecimento.”
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