Um incêndio que matou 231 pessoas na madrugada de domingo (27) em uma boate de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, está levando muitos brasileiros a questionar se a cultura de impunidade e falta de fiscalização poderão impedir o país de alcançar suas ambições de primeiro mundo.
Há uma década, o país é visto por economistas e investidores como um dos mais promissores mercados emergentes do mundo, o que contribuiu para que o Brasil elevasse sua presença comercial e diplomática e conseguisse sediar a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, dois eventos para os quais a ordem e a segurança são cruciais.
A presidente Dilma Rousseff, que chorou no necrotério improvisado que foi montado perto da boate incendiada, está preocupada em reafirmar a marcha do Brasil rumo ao mundo desenvolvido.
"Nosso país hoje tem não só reconhecimento internacional", disse ela em discurso no ano passado, mas também "a confiança e a crescente autoestima de que nós, brasileiros, podemos transformá-lo em uma nação desenvolvida".
Mas, para muitas pessoas que convivem com um cotidiano de cidades caóticas, estradas arruinadas e um interior sem-lei, esse amadurecimento do país parece irreal.
Enquanto digeriam os detalhes sobre o bloqueio na única saída da boate Kiss e outras irregularidades na segurança, muitos brasileiros começaram a apontar o dedo para parlamentares, órgãos reguladores e para o que críticos dizem ser uma cultura geral de adesão mínima às regras, sejam as leis de trânsito ou os códigos de construção civil.
"A causa dessas mortes não guarda nenhuma complexidade", disse o especialista em situações de risco e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Moacyr Duarte.
"Foram elementos simples. Falhas de controles administrativos, falhas de fiscalização, falha de inspeção final, falha de planejamento do evento. Este conjunto levou à tragédia."
Brasileiros comuns ecoam esse sentimento.
"Existe aqui uma tolerância com o descumprimento das regras", disse a advogada Flavia Rodrigues, de 34 anos, moradora de Brasília. "Essa tragédia poderia ter sido evitada se pelo menos houvesse cuidado suficiente."
É claro que acidentes não são um monopólio do Brasil. Há uma década, uma tragédia semelhante matou 100 pessoas numa boate dos Estados Unidos, e ela se repetiu no ano seguinte na Argentina, deixando 194 vítimas fatais.
Mas as mortes do domingo, atingindo principalmente estudantes universitários, contribuem para as sombrias estatísticas que fazem do Brasil um país particularmente perigoso, mesmo quando comparado a outras nações latino-americanas.
Durante a recente década de crescimento econômico, que levou a um "boom" da construção civil, sindicatos e ativistas de direitos humanos criticaram o governo e as construtoras por uma disparada nas mortes e acidentes em canteiros de obras com pouca regulamentação. Entre janeiro e outubro de 2011, 40.779 trabalhadores foram vítimas de acidentes graves de trabalho, sendo que 1.143 morreram, segundo dados do Ministério da Saúde. O número total é 10% maior que em igual período de 2010 - 37.035 acidentes graves.
A situação é dramática também nas movimentadas e mal conservadas estradas brasileiras. O país tem uma média superior a 18 mortes anuais em acidentes de trânsito por 100 mil habitantes, contra apenas cerca de 10 em países de alta renda, segundo um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Na Argentina, na Colômbia e no Chile a média gira em torno de 13 mortes por 100 mil habitantes.
Mais perturbadores ainda são as taxas de homicídio. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil registrou em 21,7 crimes desse tipo a cada 100 mil habitantes em 2009.
Embora isso esteja abaixo do índice verificado em alguns países latino-americanos com graves conflitos sociais, a cifra é várias vezes superior às de Rússia (11,2), Índia (3,4) e China (1,0), outras economias emergentes às quais o Brasil costuma ser comparado.
Após uma recente onda de violência em São Paulo, resultado de uma guerra entre quadrilhas e a polícia na maior cidade brasileira, 91 por cento dos entrevistados em uma recente pesquisa do Ibope dizem se sentir inseguros.
Cultura da impunidade
Para piorar as coisas, os homicídios, como muitos outros crimes num país onde o Judiciário é notoriamente lento, costumam ficar impunes.
Um relatório de 2012 do Ministério Público Federal mostrou que apenas 8 por cento dos homicídios no Brasil são solucionados, enquanto essa cifra chega a 65 por cento nos Estados Unidos e a 90 por cento na Grã-Bretanha.
Esse dado ampara a ampla sensação de que é possível escapar da Justiça mesmo em casos que resultam em mortes.
"Há uma cultura geral de impunidade", disse o sociólogo Julio Jacobo Waiselfiz, autor de um "Mapa da Violência" que compila anualmente estatísticas da criminalidade no país.
"Isso significa que os homicidas se livram, que as estradas não são consertadas, e que as regras e a fiscalização ainda não acompanham a promessa de crescimento econômico."
Nesta segunda-feira, esse debate assumiu papel central nas discussões da imprensa brasileira, de governos locais e até de autoridades estrangeiras.
"Em São Paulo, prefeitura não tem estrutura para fiscalizar eventos", dizia um título do jornal Folha de S.Paulo nesta segunda-feira, citando o relatório de uma CPI da Câmara Municipal. O governo paulista divulgou nota destacando o treinamento dos bombeiros locais para operações de busca e resgate.
Na Copa
Em visita a Brasília nesta segunda-feira, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, rejeitou rumores de que a tragédia de Santa Maria tenha ampliado as preocupações com a segurança nos estádios da Copa. O incêndio, disse ele a jornalistas, "não teve nada a ver com o futebol, nada a ver com os estádios".
Ele acrescentou que as regras de segurança rotineiras para as Copas permitem que "possamos esvaziar os estádios em menos de alguns minutos." A população certamente espera que sim.
Muitos se lembram do desabamento parcial do estádio da Fonte Nova (Salvador), um dos futuros palcos da Copa, ocorrido em 2007 por causa dos saltos dos torcedores. Sete pessoas morreram e várias ficaram feridas. Também está vivo na memória o desabamento de três prédios altos no centro do Rio, no ano passado, que causou cinco mortes.
Em carta ao jornal O Globo, um engenheiro geotécnico recentemente alertou que os temporais de verão podem causar uma repetição das enchentes e deslizamentos que mataram mais de 900 pessoas na serra fluminense em 2011.
Embora os governos estadual e federal tenham investido em tecnologias para avisar os moradores sobre a chegada de chuvas fortes, esse engenheiro observou que poucas providências foram tomadas para evitar que as pessoas continuassem morando em áreas de risco, ou mesmo que construíssem novas casas nesses locais de encostas.
"Não há nada de natural nesses desastres", escreveu o engenheiro Alberto Sayão. "O país não pode mais arcar com a impunidade causada pela leniência, a omissão e a incompetência das autoridades."
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