O pedreiro aposentado Sebastião Sampaio, 69 anos, é um homem alinhado. Não sai de casa – no Sabará (CIC), onde é líder comunitário – se não for em mangas de camisa e sapato engraxado. Quando volta de suas andanças pela comunidade, está quase sempre igual, do cabelo bem penteado às calças vincadas. Diferente mesmo, só os sapatos, agora sujos de barro.
Tem sido assim desde o ano passado, quando soou o alerta da tríplice epidemia de dengue, chikungunya e zika. Sebastião virou recordista olímpico em virar potes com os pés. Não se contenta com o que encontra – também vai atrás do que não vê. Entra por ruelas que não conhecem a cor do asfalto, as preferidas para o despejo de caliças de construção e lixo doméstico. Bate palmas na casa dos vizinhos – aponta com o dedo que ali mora o perigo. Gasta tempo e sapatos.
“O zika mudou nossa rotina. Acho que hoje, aqui, a gente fala mais do mosquito do que de habitação”, compara, dando a régua para medir o impacto da doença. O Bolsão Sabará não é só uma ocupação de 20 mil moradores distribuídos por ladeiras e becos, é desde 1989 o endereço das mais apimentadas discussões sobre o direito à moradia da capital: os terrenos vendidos aos moradores pela Cohab tinham proprietário. Morar na região é sinônimo de falar do caso que se arrasta na Justiça. Por ironia – a contar por Sebastião – o assunto ganhou uma trégua: só se fala no mosquito.
“Há pânico. Temos áreas alagadiças, mas as reações demoram”, relata. É fato que casa de seu Sebastião virou endereço para estudantes em busca de panfletos sobre o Aedes aegypti. É um bom sinal. Mas há pouco mais de uma semana, um mutirão de limpeza promovido pela associação de moradores e unidade de saúde conseguiu arrebanhar apenas quatro voluntários.
Era uma sexta-feira – o dia da semana não ajudou, assim como não ajuda o desânimo sentido pelos moradores diante de pilhas de lixo em algumas esquinas. Não faltam troncos de árvore, carcaças de eletrodomésticos, restos de demolição, servidas de fartas poças de água. Desmanchar essa hospedaria de mosquitos exige não só generosidade – exige braços.
Na curva do rio
O loteamento Alto Barigui 2 nasceu há 18 anos, a dois passos entre o sonho e o pesadelo. A área – na divisa da CIC com o Fazendinha – era literalmente banhada pelo Rio Barigui. Os bons sobrados erguidos por uma centena de moradores tinham como bônus não só as águas turvas do rio, mas também ratos, baratas, lixo e estima baixa, potencializada depois de cada cheia. Nem o temido Morro do Piolho, ali perto, causava tanto desconforto. Medo mesmo era da dengue. A reação veio há uma década, quando a turma da vila começou a agir como se fosse um condomínio fechado. Reuniões concorridas – tendo à frente a hoje comerciante Marilei Correa de Almeida, 43 anos – culminavam em pressão no poder público e acordos espartanos entre os associados. Deu certo. Em março do ano passado ganhou forma uma praça de 1,5 mil metros quadrados, na beira do Barigui, em vias de ser inaugurada. O nome ainda é segredo. É lugar bonito, para lazer, limppo e organizado, além de um mirante natural do rio que visto não será esquecido. O afeto instantâneo pela praça facilita a vida da ativíssima Marilei, que usa as redes sociais, mas principalmente a conversa no espaço público para alertar os vizinhos. “O combate ao zika é minha nova bandeira”.
A prefeitura municipal percebeu que o desejo de ajudar esbarra na estiva que aguarda os voluntários. Aumentou a oferta de caçambas para as comunidades, em especial na zona sul. É a região que mais cresce. Erguer e derrubar paredes por lá faz parte da rotina, mas pagar uma caçamba, um luxo. O aluguel chega a R$ 180, daí as montanhas de cimento e tijolos que causam espanto mesmo em áreas como o Sabará. As favelas ficaram para o passado, as casas de alvenaria atestam vitórias no espaço privado. O mesmo não se pode dizer do espaço público.
“Jogar lixo na rua é cultural”, polemiza o ativista carioca Cláudio Oliver, 53 anos, uma das cabeças à frente da ONG Casa da Videira, cujas bandeiras ambientais podem ser resumidas num slogan: “Diga ‘não, obrigado’ ao plástico”. Para ele, o hábito que tanto colabora para que os índices da epidemia avancem vem dos costumes índios e caboclos de queimar sobras. Acreditava-se que tudo que não presta seria transformado pela própria natureza. Está no imaginário.
A prática teria sido herdada nas roças, até ganhar sua versão urbana, numa esquina perto de você, pondo em risco a possibilidade de viver junto. Repete-se no Sabará, mas também no Ecoville, onde Oliver vive e observa. Nesse cenário, “o amor nos tempos do zika” se traduz, sobretudo, nos modernos conceitos de “cuidado” e “hospitalidade”. Conquistá-los exige saliva e trabalho pesado junto a quem estiver ao alcance.
No que diz respeito a Oliver e sua turma, não se trata de propaganda barata. A turma da Videira é radical, pratica agricultura urbana e não poupa saliva para vociferar contra o que chama de consumismo apático, higienização do cenário e artificialização dos espaços, “males que nos trouxeram até o ponto em que estamos”.
Caçambas a postos
As ondas de afeto provocadas pelo drama do zika vírus podem ser potencializadas por informação. Em qualquer que seja o bairro, a palavra de ordem é recorrer ao 156 e pedir que caliças, restos de limpeza de jardim, madeiras e móveis sejam recolhidos. O serviço funciona, os dados o comprovam. Em um ano, foram 23.872 solicitações para retiradas de pequenas sobras de material de construção. Embora o problema seja maior na extensa zona sul, é dessa região que vêm os campeões de pedidos. Sítio Cercado, CIC, Cajuru, Boqueirão e Xaxim são os recordistas nesse quesito do 156. O recolhimento não é imediato, mas não falha. Palavra de ordem é estimular seu uso. Outro avanço é no número de caçambas a serviço das regiões mais pobres: são 37, à disposição nas estações de sustentabilidade e áreas prioritárias, como o Parolin. Um telefone, com pedido do serviço, pode evitar que o mutirão seja um trabalho pesado demais para as comunidades.
A ONG ergueu a voz antes do surto. Limpou e plantou em terrenos baldios. Hasteou a bandeira “do meu lixo cuido eu”. Alertou para a troca da refeição caseira pelos isopores no micro-ondas, para a cortina de fumacês que não deixou “nem lagartixa, nem sapo, nem nada”. Destruídos os predadores, “o mosquito saiu da posição de comida para a de comedor”, faz trocadilho o homem que já provou dos tremores da dengue, anos atrás, quando morava no Rio de Janeiro. “É horrível”.
As caçambas, os mutirões, os folhetos resolvem parte do problema. A outra – pondera o ativista – só encontra salvação na esfera hiperlocal, na microação, nas nanorrelações – palavras de seu vocabulário. “Ao contrário do que pensam, não sou idealista nem nada. Sou pessimista. Vai piorar. Mas só nos resta fazer o que tem de ser feito”, repete, sobre sua crença nas pequenas ações comunitárias – ao alcance dos sapatos de gente como o líder Sebastião Sampaio.
“O mundo perdeu seu tamanho real. A escala dos problemas deixou de ser humana. O que está ao meu alcance é furar o copo e jogar no lixo. Sua ingênuo, mas a mudança vai nascer do exemplo, a melhor política”, diz. Se há mais amor, Oliver não sabe. Mas lhe parece evidente que a dor deixou para depois o circuito de ódio em que o Brasil andava metido.
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