| Foto: Daniel Castellano – Arte: Felipe Lima

Na língua dos presos, "capivara" significa ficha criminal, folha corrida tão longa que sua simples visão provoca a inércia capivaresca. Captou? "Areia" é o apelido algo curioso dado aos advogados. Quando disparam contra os presidiários aquele palavrório embolado, "é como se lhes jogassem areia nos olhos", explica Adaílton Luiz Correia, 36 anos, conhecido como Tito, o prestativo porteiro do Procon de Curitiba. Sugeri-lhe que escreva um dicionário. Prometeu pensar; afinal, ainda está a lamber as feridas.

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Cinco anos atrás, Tito tinha um vocabulário bem menos sortido. Passara de guri criado solto na Barreirinha a funcionário em um hotel. Cursava Contabilidade. Estava casado, tinha filho, por certo ia à padaria comprar chineques. Até ser preso, condenado e virar o número 166076. É capítulo da vida que o leva às lágrimas, como eu gostaria de lhes contar.

Vocês têm o direito de não acreditar – muitos o fizeram ao saber das enrascadas em que nosso pacato cidadão se meteu –, mas Tito acabou atrás das grades para proteger seu irmão mais novo, às voltas com o tráfico. Qual herói, assumiu a culpa, passando a morar numa cela modelo quitinete, habitada por 21 homens que pensavam dia e noite em como sair dali. Pelas suas contas, ficou uma semana em pé, à espera de uma vaga no beliche. A descrição que faz da superpopulação e seus odores é de dar náusea seguida de pânico. O sufoco durou um ano e dois meses – e só não acabou antes porque um companheiro de infortúnio impediu que Tito se matasse. Tatuou o nome da família no braço e sossegou. "Encontrei muita gente boa", repete, qual um rosário.

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Transferido para a Penitenciária Estadual de Piraquara, a PEP, ganhou um colchão para chamar de seu. Dividia o espaço com seis pessoas e, pasmem, conta ter descoberto ali a solidariedade. Ele é assim – vê beleza onde só parece existir a treva. Suspeito ser esse o segredo de ter sobrevivido a quatro rebeliões, sem um arranhão, sendo amado salve-salve até pelas facções que infernizam o sistema prisional. Pedissem um detento exemplar para exibir às massas, seria o Tito.

Era o Tito ajudando na sala da aula. O Tito promovendo campeonatos. O Tito dando uma palavra aos desesperados, mesmo depois de terem visto uma decapitação ou um azarado ser queimado – para citar alguns dos expedientes do cárcere. Além do mais, estava na boa: havia conhecido Míriam. Amaram-se. Fizeram planos. Foram morar juntos quando ele ganhou a soltura.

Tão bom quanto foi o emprego, no Procon, onde distribuía sorrisos a centenas de pessoas que, como ele, procuram a liberdade – querem se ver livres de geladeiras emperradas e de entregas atrasadas. Estava tão perfeito que Tito não contou a ninguém ser um ex-presidiário. "Tive medo. Se sumisse uma caneta sequer, iam dizer que fui eu", confidencia. Como precisava se apresentar mensalmente em dois órgãos da Justiça – tendo de escafeder-se no meio do serviço –, faltou a um e acabou detido de novo, sem dó.

A notícia "Tito preso" fez tremer o chão do Procon mais que as queixas contra a telefonia. Começou a maratona para provar que tinha justificado a falta. Guerra perdida. Qual Joseph K., o personagem de Kafka em O processo, o porteiro foi engolido pela burocracia do Estado. Quando sua filha com Míriam nasceu, estava na penitenciária. Viu a guria pela primeira vez em 1.º de maio, Dia do Trabalho, ocasião em que quitou suas dívidas em definitivo com a Justiça. Estava livre.

O que ele se pergunta é por que a turma do Procon fez das tripas coração para vê-lo solto. Lembro que é um cara querido, é isso. Duvida. Tento de novo. Digo que o pessoal do Procon entende como poucos de propaganda enganosa. Não teve dúvida da inocência dele e, alto lá, saiu em sua defesa. Tito não mostrou a ninguém o seu rótulo. Mostrou o que era. Foi o que bastou.

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De minha parte, sugiro uma nova palavra no vocabulário da cadeia – "procon", que significaria "pessoas que não julgam pela capivara e não jogam areia nos olhos dos outros".

E, Tito, "não chores mais". Passou. Abração.