O anúncio da divulgação dos salários de servidores públicos, feito pelo governo federal, constrangeu funcionários, incomodou membros dos demais poderes, mas representou uma vitória da sociedade contra o patrimonialismo. Há, entretanto, o risco de ser uma conquista passageira. Certamente os setores mais atrasados das instituições brasileiras vão tentar impedir a divulgação das informações salariais, utilizando a via judicial. E como é provável que o Supremo Tribunal Federal (STF) seja chamado a se pronunciar, é preciso que a sociedade fique atenta aos movimentos da Corte.
Não seria de surpreender o uso de malabarismos jurídicos de ministros para evitar a divulgação de salários. Sob o argumento de defesa da intimidade, o STF poderia apresentar uma solução "meio termo" na tentativa de agradar retrógrados e republicanos. Poderia decidir que somente a faixa salarial do funcionário deveria ser divulgada, resguardando assim a intimidade, ao mesmo tempo em que proporcionaria um pouco de transparência.
Pode parecer absurdo, mas um raciocínio semelhante foi usado quando houve o julgamento do STF que resultou na Súmula Vinculante n.º 13. A ideia original da súmula era acabar com o nepotismo. Porém, como a súmula permite a contratação de familiares em cargos comissionados de primeiro escalão, o resultado prático foi a legalização do nepotismo. A partir da edição da súmula, não se considera ilegal presidente nomear um familiar para o ministério, ou governador e prefeito, contratar parentes para as secretarias.
O STF tentou, na ocasião, evitar o nepotismo generalizado na administração, ao mesmo tempo em que buscou resguardar o direito de livre nomeação do governante. O resultado foi desastroso. As brechas que a súmula abriu representaram um retrocesso. A partir de 2008, a sociedade passou a considerar normal um governante contratar parentes para o primeiro escalão da administração pública.
Felizmente, o país vive uma grande onda de transparência pública. A Lei de Acesso à Informação Pública está em vigor. Está consolidada na sociedade que a transparência é necessária. Cada vez mais se torna verdadeiro para a sociedade que o poder de controle final, num Estado Democrático de Direito, é dos cidadãos. E sendo dos cidadãos o poder de controle, não é possível tolerar uma cultura do sigilo.
Além disso, há precedentes judiciais que embasam o argumento que, como os salários são pagos com dinheiro público, nada mais justo que haja a devida divulgação. A coluna, inclusive, já abordou em outra ocasião o julgamento feito pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 718.210, no qual se declara que "é direito da coletividade conhecer os salários dos servidores públicos, pois, ao final de cada mês, suporta, como contribuinte, a conta da folha de pagamento do Estado. Assim, nada mais justo que assegurar a cada cidadão a possibilidade de saber o modo como são remunerados todos os que lhe prestam serviços".
Não há nada de sobrenatural nessa visão. A divulgação de salários ocorre em outros países da América Latina, como Chile, Peru e México. Nos Estados Unidos, os servidores da Casa Branca têm seus salários divulgados na internet. E, agora, isso pode se tornar realidade em todos os níveis de administração pública no Brasil.
Entretanto, para evitar um desfecho indesejado, como o que ocorreu no caso do nepotismo, é preciso um considerável esforço da sociedade em exigir um comportamento republicano dos dirigentes das instituições brasileiras. Seria frustrante que, em meio a essa onda de transparência pública, o STF proferisse uma decisão em favor da cultura do obscurantismo.
É nítido que, sem a pressão da sociedade, os salários do setor público irão permanecer fechados. Basta ver o que ocorre no Paraná. Conforme publicou a Gazeta do Povo, no último sábado, o presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, Valdir Rossoni (PSDB), disse estar pronto para divulgar a folha salarial do Legislativo. O tucano, entretanto, afirmou não querer ser deselegante com os outros poderes, e, por essa razão aguarda que o Executivo e o Judiciário estadual se manifestem.
Então, faria bem aos cidadãos reivindicar que todos os órgãos dos três poderes no estado do Paraná passem a divulgar o quanto ganham os seus funcionários. Afinal, se todo o poder emana do povo, inclusive o de fiscalizar, não precisam os cidadãos esperar a boa vontade de seus governantes.