“Canais como caminhos prisioneiros, em busca de saída. Para os mares, os grandes, traiçoeiros mares da vida.” Assim, em 1954, o jovem Vinícius de Moraes descrevia Genebra, suas vias e canais, em um de seus poemas. Mais de 60 anos depois, a mesma cidade fria que serviu de inspiração ao poeta agora se revela traiçoeira para outros brasileiros, aqueles que tentaram esconder dinheiro ilícito.
Se a Lava Jato transformou Curitiba em República, com seus procuradores e juiz, a mesma operação levou à fundação de uma espécie de filial no exterior. O epicentro da operação anticorrupção fora do Brasil é mesmo a cidade cantada pelo poetinha - nesse caso, uma república, de fato. Proclamada em 1541, a República e Cantão de Genebra ganhou fama de ilha de estabilidade em uma Europa permeada por guerras.
Não demorou para que o local também passasse a ser um dos centros financeiros mais importantes do mundo, beneficiado de forma decisiva ainda por suas regras de sigilo bancário. Se esse cenário garantiu um fluxo inédito das maiores fortunas do mundo, a cidade também passou a ser usada como plataforma de lavagem de dinheiro.
Anos depois, seria a colaboração da Justiça suíça com o Brasil que entregaria grande parte dos suspeitos, suas contas e seus segredos. Traiçoeira, a mesma cidade que abriu centenas de contas para esconder bilhões de reais hoje entrega os nomes de seus clientes, na esperança de ser preservada. Paulo Maluf, Nicolau dos Santos Netto e dezenas de outros nomes de brasileiros foram alvos de descobertas de contas na cidade de Calvino.
Mas foi com a Operação Lava Jato que se escancarou como a república genebrina era central na vida política do Brasil, uma espécie de plataforma financeira de campanhas eleitorais e de onde propinas eram pagas para diferentes partidos.
A cada nova operação desde 2014, informes da Polícia Federal e de procuradores apontavam para endereços e o envolvimento de bancos com base na cidade suíça de pouco mais de 200 mil habitantes. Documentos revelaram, por exemplo, como investigadores passaram a suspeitar que a Odebrecht teria criado uma “rede de contas” para camuflar pagamentos, justamente a partir de Genebra. Na mesma cidade, ex-diretores da Petrobrás transformaram a estatal em um caixa paralelo para grupos políticos e para seus próprios interesses.
Situada no local onde o lago Leman se transforma em rio Ródano, Genebra tem um dos menores índices de criminalidade do planeta. Carros de luxo estacionam em locais públicos com ares de normalidade. E não são raros os mercados populares na zona periférica desta república em que o cliente pega suas frutas, pesa e coloca o dinheiro correspondente em uma caixa. Nem os alimentos e nem a caixa são furtadas, apesar da ausência de funcionários ou vigias.
Ainda assim, foi seu sistema financeiro que permitiu operar o maior esquema de corrupção envolvendo partidos políticos e o mundo empresarial brasileiro.
Numa república diminuta, mas milionária, os atores envolvidos na Lava Jato provavelmente se cruzaram. Alguns, de fato, chegam a viver e trabalhar na mesma rua. Na Quai des Forces Motrices e à beira do rio, por exemplo, um apartamento avaliado em US$ 3,5 milhões passou a ser ocupado por Bernardo Freiburghaus, considerado como operador das propinas da Odebrecht.
Morador de um dos endereços de maior prestígio de Genebra, perto dos bancos J. Safra e Credit Suisse, ele costumava passear às margens do Ródano. Não era difícil encontrá-lo. Em 2015, ao se dar conta de que era acompanhado por um jornalista, passou a ofender a reportagem: “Vocês são uns merdas”. Até aquele momento, ele não hesitava em aparecer na janela de seu apartamento, ou mesmo fazer um churrasco. Segundo a delação premiada de pelo menos dois ex-diretores da Petrobrás, a Odebrecht havia indicado o operador como a pessoa que deveria ser procurada para a abertura das contas em Genebra.
Quando a operação eclodiu, ele usou sua nacionalidade suíça e alegou que tinha “residência permanente” em Genebra. “Se forem me prender, vão ter de prender muita gente aqui na Suíça”, disse o operador suíço-brasileiro à reportagem.
A menos de 200 metros dali, mais um endereço caro desta república aos procuradores: o escritório de um dos principais advogados de clientes brasileiros envolvidos na Lava Jato. Saverio Lembo, do gabinete Bär & Karrer, na Quai de la Poste, número 12. Em uma carta ao Ministério Público, ele chegou a apelar à Justiça suíça que não continuasse sua colaboração com o Brasil, alegando supostos abusos do juiz Sérgio Moro.
Basta a Lembo abrir a janela de seu escritório para dar de cara com os bancos usados pelos suspeitos no Brasil. Ficam literalmente do outro lado do rio, cruzando uma pequena ponte de aço, por onde diariamente passam apressados moradores. Ali, na Quai des Bergues, encontra-se a principal agência do HSBC de Genebra, local usado por Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobrás, para guardar a propina recebida. Outro cliente desta mesma instituição financeira foi Pedro Barusco, também da Petrobrás.
No total, 42 bancos suíços foram usados pelo esquema de corrupção no Brasil, com mais de 1 mil contas bloqueadas até aqui. Pelo menos 500 ficam em Genebra. Um dos principais operadores, Alberto Youssef, foi outro que usou as instituições financeiras da cidade para ocultar valores desviados de contratos da estatal. Já o ex-diretor de Internacional da Petrobrás, Jorge Zelada, recebia parte da propina em uma conta em nome da offshore Tudor Advisory Inc., aberta na sede genebrina do banco Lombard Odier.
À reportagem, um dos donos do banco, Patrick Odier, garantiu que maiores controles foram instaurados depois do escândalo. Mas, numa rara declaração, afirmou que “lamentava” o envolvimento no caso. O constrangimento de cúmplices (desavisados ou não) contrasta com a postura colaborativa da Justiça suíça, que criou sua própria força-tarefa com mais de dez pessoas trabalhando no caso em tempo integral. Por causa disso, o presidente da Suíça, Johann Schneider Ammann, diz acreditar que a reputação desta república sai ilesa. “Não acho que nossa imagem foi tão afetada, houve uma decisão deliberada do Ministério Público em ajudar”, disse.
Engenharia
As descobertas dos procuradores mostraram que o esquema montado nesta república incluiu muito mais que bancos - e, com isso, ganha corpo nosso tour pela Lava Jato no exterior. Deixando a beira do rio Ródano, numa caminhada de dez minutos nas proximidades do muro da Cidade Velha, chega-se ao número 11 da Rue Général-Dufour. No primeiro andar e de frente para o principal teatro da cidade, encontra-se o escritório da empresa uruguaia Posadas y Vecino Consultores. Foram eles, segundo as investigações, que ajudaram a montar offshores ligadas ao ex-deputado Eduardo Cunha.
A empresa uruguaia, porém, não passa de uma sala dentro de um outro escritório, inquilino do local. À reportagem, uma funcionária explicou que a pessoa que se ocupa da “empresa” se limita a recolher a correspondência e passa pouco tempo no local. Um ponto que apresentou - ainda - pouco interesse neste sightseeing dos recantos do dinheiro ilícito.
Para alguns, porém, a República de Genebra representou também o fim de uma fuga, por mais que tenham tentado estabelecer uma engenharia para esconder recursos. Esse foi o caso de Fernando Migliaccio, considerado um dos chefes do departamento que se ocupava das propinas dentro da Odebrecht. Em fevereiro, ele foi preso pela polícia de Genebra ao tentar esvaziar uma conta. Segundo os investigadores da Lava Jato, Migliaccio possuiu diversas empresas offshore e contas nos bancos PKB, Audi e Barclays, todos na Suíça.
Os investigadores também o consideram um dos responsáveis por uma planilha com supostos pagamentos ilegais da Odebrecht. Nessa lista, há menções de pagamentos a “Feira”, que a polícia acredita ser João Santana, marqueteiro das últimas campanhas do PT. A conta dele, também em Genebra, foi bloqueada. A suspeita é de que milhões passariam por ela para alimentar esquemas de caixa 2 em campanhas eleitorais.
Outros moradores do Cantão genebrino nem conseguiram voltar às suas casas. Mariano Marcondes Ferraz, dono de um apartamento de luxo no sofisticado bairro de Champel, foi preso ao tentar embarcar no Brasil, em direção à Europa. A empresa onde ele trabalhava nesta república, a Trafigura, fica na rue de Jargonnant 1, perto do Museu de História Natural da cidade. Mas garante que as suspeitas não se referem a trabalhos realizados pelo brasileiro em nome da companhia.
Para alguns, a cidade também representa esperança. Na beira do lago Leman, o prédio do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos tem servido como uma espécie de habeas corpus internacional para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seus advogados pedem que o Comitê de Direitos Humanos um parecer da entidade, alegando perseguição política. Um ponto que segue sem desfecho, neste futuro caminho guiado a pé pela república genebrina.
Das janelas de onde o Comitê se reúne para avaliar os casos, avistam-se os Alpes, as plácidas águas do lago e, ao fundo, o luxuoso prédio do banco Julius Baer. Era usado por Eduardo Cunha para manter seu dinheiro suspeito. Em seu depoimento, a mulher do ex-deputado preso, Claudia Cruz, afirmou desconhecer a existência de uma conta neste banco. Muito antes de o escândalo eclodir, Cláudia postou uma foto nas redes sociais em que posava com o famoso L’horloge fleurie, o relógio de flores, ao fundo. Dali, a porta do banco que guarda o dinheiro que ela diz desconhecer estava a 400 metros de distância. Os “caminhos prisioneiros” do poetinha nesta velha república podem mesmo ser proféticos.
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