Pivô da denúncia que desencadeou a Operação Carne Fraca, o delegado sindical Daniel Gouvêa Teixeira é enfático: “não apareceu nem 1% do esquema até agora”. Nesta entrevista à Gazeta do Povo, Teixeira diz que a maior parte do sistema de fiscalização é correto e que os problemas sanitários encontrados na investigação são consequências da corrupção na área.
“A maioria do que está saindo sobre o assunto está abordando a questão sanitária, quando o que deveria ser feito era centrar na corrupção. Tudo está ligado à relação íntima entre políticos e funcionários de alto escalão do Ministério da Agricultura. Enquanto houver essas indicações políticas para cargos, vamos estar sujeito a isso. Os problemas sanitários são decorrentes da diminuição de fiscalização em função de interesses.”
Carioca, médico veterinário formado pela Universidade Federal Fluminense, o auditor fiscal de 39 anos estava em Santa Catarina e pediu, em 2012, remoção para o Paraná. Foi designado para atuar como substituto de Maria do Rocio Nascimento, que ocupava a chefia estadual do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sipoa) desde 2008 e foi presa durante a Operação Carne Fraca. Foi aí que ele começou a perceber que algo estava errado.
CARNE FRACA: Leia a cobertura completa sobre a operação
Teixeira afirma ter levado ao Ministério da Agricultura relatos sobre as irregularidades que via dentro da superintendência da pasta no Paraná e na relação entre fiscais e frigoríficos. Ao não ser ouvido, decidiu procurar a Polícia Federal, em 2015.
Ele diz não ver exageros no que foi feito pela PF até o momento e rebate o discurso que vem sendo adotado pelo ministro Blairo Maggi. Para ele, o chefe do Ministério da Agricultura não domina totalmente os critérios técnicos para avaliar o caso. “ A Polícia federal se capacitou nesses dois anos e os investigadores sabem hoje muito mais do que alguns auditores do ministério. E mais do que todos os ministros que passaram pelo cargo.”
Apesar de temer perseguições, Teixeira afirma esperar que as denúncias mudem, para melhor, o setor de carnes no Brasil. “Muito de ruim aconteceu e espero que seja bem melhor a partir de agora.”
Confira a seguir a entrevista completa:
Quando você percebeu que irregularidades estavam sendo praticadas?
Quando eu fui designado chefe substituto da Maria do Rocio, percebi irregularidades na conduta dela e da superintendência, como assédio moral, remoção de funcionários sem justificativa, não andamento de processos administrativos, problemas em autos de infração. Ela recebia bastante contato das empresas, intercedia bastante, tinha uma intimidade. Quanto melhor era feita a fiscalização, mais chance de a pessoa ser removida. E era uma atribuição dela escolher quem atuaria em cada lugar. Comecei a ver que poderia ter uma questão de improbidade administrativa, me posicionei contra e fui retirado da chefia substituta. Eu denunciei dentro do Ministério da Agricultura e testemunhei contra ela num processo ético, gerando um termo de conduta em que ela ficou dois anos em observação. Ela assediava quem fazia o trabalho corretamente e beneficiava aqueles que eram coniventes.
O que aconteceu quando você se posicionou contra o que acontecia?
Fui transferido para trabalhar em Bocaíuva do Sul, a 75 quilômetros de Curitiba. Em 2013, eu determinei o fechamento de um frigorífico por irregularidades sanitárias e fiquei sabendo, pelos donos e por funcionários, de algumas práticas irregulares. Com o fechamento do frigorífico, fui designado para fiscalizar outros dois frigoríficos, Peccin e Souza Ramos, onde descobri duas fraudes, a da merenda escolar e a de falsificação de produtos.
É a situação da troca de peru por frango? Você chegou a fazer testes no produto?
Quem fez as análises foi a Secretaria de Educação, que recebeu uma denúncia de um concorrente da licitação, de que poderia haver fraude, por causa do preço muito baixo. Fiz os autos de infração. Pesquisei a documentação da empresa e não tinha registro da entrada de matéria-prima para a fabricação daquele produto. Foi feita uma análise pelo Tecpar e de um laboratório de DNA. E ,. com base nisso, a Secretaria rescindiu o contrato e evitou a entrega de uma segunda remessa de produtos. Depois fiz autuações em outro frigorífico e, no mesmo dia, eu fui afastado da fiscalização. Logo em seguida fui transferido para outro setor, para a área de inspeção de produtos e insumos veterinários, onde trabalhei nos últimos dois anos.
E você entende essa mudança de atribuição como uma retaliação pelo trabalho que fez?
Eu vejo isso como uma adaptação do sistema de corrupção para tirar do caminho quem está atrapalhando. Não só tirar pontualmente, mas de toda a fiscalização. Levei essa situação também para a Polícia Federal, porque há indícios de que a remoção fazia parte do esquema.
Você atuou como uma espécie de consultor na investigação? Por que o ministro Blairo Maggi disse que havia imprecisão técnica no trabalho da Polícia Federal e que o ministério não foi convidado a colaborar com a apuração dos fatos...
Prestei depoimentos, várias vezes, sobre as denúncias que fiz. E o ministério não foi convidado a colaborar porque funcionários do órgão estavam sendo investigados e porque se sabia disso há mais de 10 anos e não foram tomadas providências. As imprecisões técnicas que o ministro cita são comentários de quem não conhece nem os frigoríficos nem o procedimento que foi denunciado. Ele está dizendo que vitamina C não faz mal, mas se eu uso para transformar uma carne podre, mascarando odor e cor, é uma fraude. E não é a vitamina que fará mal, mas eventualmente a carne estragada fará.
Você acredita que a maior parte do sistema de fiscalização é correto e seguro?
Acredito nisso, sim. Vejo que a maioria do que está saindo sobre o assunto está abordando a questão sanitária, quando o que deveria ser feito era centrar na corrupção. Tudo está ligado à relação íntima entre políticos e funcionários de alto escalão do Ministério da Agricultura. Enquanto houver essas indicações políticas para cargos, vamos estar sujeito a isso. Os problemas sanitários são decorrentes da diminuição de fiscalização em função de interesses.
E os casos sanitários são pontuais?
Eu não sei se são pontuais, mas são consequências da corrupção. Começou com duas indústrias e chegou a mais de 20. Não dá para saber, até o momento, o tamanho do problema. Quem está falando que isso atinge só uma pequena parcela do que existe não está considerando que não foram investigadas todas. Estão falando que são 4 mil unidades e que foram identificadas suspeitas e irregularidades em apenas 20. Mas são todas as que foram investigadas. O consumidor não tem condições de avaliar os produtos. Essa fiscalização é tutela do Estado, que deve combater a corrupção para que os funcionários concursados possam atuar em favor da população.
Quais devem ser as consequências dessa operação?
Temo que haja perseguição, que as pessoas que denunciaram isso sejam perseguidas, porque isso mexeu diretamente com questões políticas e com os brios do Ministério da Agricultura.
Você acha que será perseguido?
Vão vasculhar a minha vida inteira para tentar achar algo para abrir um processo administrativo disciplinar contra mim porque essa é uma cultura dentro do ministério, com base no que já aconteceu aqui na Superintendência do Paraná, quando se batia de frente com o poder político e econômico. Eu já fui denunciado no passado por ter feito fiscalização corretamente. Não conseguiram provar nada, mas é desgastante. Agora, espero que as pessoas comecem a pensar se vale a pena ser corrupto.
Era esse o seu objetivo quando denunciou?
Meu objetivo era moralizar o órgão. Queria que fosse um lugar que atendesse a missão dele, de garantir alimento de qualidade à população, sem beneficiar ninguém por causa de interesses diversos. E que as pessoas entendessem que as normas existentes no ministério são para salvaguardar os consumidores.
Você acredita que empresas que agiam corretamente eram impelidas por fiscais corruptos a participar do esquema para não terem problemas?
Não tenho como dimensionar isso. Mas assim como eu denunciei, qualquer pessoa poderia fazer isso. Não existe norma capaz de fechar uma empresa que está dentro das regras. Avalio que era possível ser correto e não participar do esquema.
Tem se falado em exagero por parte da Polícia Federal. O que pensa sobre isso?
Tenho certeza de que não apareceu nem 1% do esquema até agora. Não acho que houve exagero. A Polícia federal se capacitou nesses dois anos e os investigadores sabem hoje muito mais do que alguns auditores do ministério. E mais do que todos os ministros que passaram pelo cargo.
Você acredita que está se tentando desqualificar o trabalho da Polícia Federal?
Quando o ministério pergunta quais são os lotes, é um blefe para desqualificar a operação, que se baseou em algumas análises, mas ela se centrou muito em evidências de corrupção. Quando o ministério pede os laudos, dizendo olha o estardalhaço que foi feito só com dois laudos, tira o foco da questão política e da corrupção.
Mas dois laudos não é pouco mesmo?
Não tem só dois laudos, tem muito mais, mas ainda não vieram a público porque fazem parte da investigação e vão embasar os próximos passos da investigação.
Soube de alguma situação de auditores que trabalhavam corretamente e eram pressionados pelo sistema?
Sim, são vários. Algumas informações deles subsidiaram as minhas denúncias. Mas todos eles pediram anonimato. E como eu sou delegado sindical, eu puxei a responsabilidade para mim. A maioria dos fiscais age corretamente.
E como está a reação dos seus colegas?
Em sua grande maioria, os auditores acreditam que agora vão conseguir trabalhar como deve ser feito. Mas uma pequena parcela está preocupada com o nome do ministério e com eventuais perdas de emprego no setor. Mas não se pode ponderar um esquema criminoso para preservar o nome do ministério.
Você imaginava que o caso tomaria essas proporções?
Não. Sabia que havia problemas em outras empresas, mas achei que a investigação ia ficar restrita às duas empresas que denunciei.
Você chegou a mencionar casos de “carne verde”. Como foi isso?
Recebi fotos de funcionários. Era disfarçado com corante para o uso em embutidos. O produto químico mascara a aparência e o odor, mas não a produção de certas toxinas. O cozimento é modulado para acabar com algumas bactérias num certo nível, mas quando é muito comprometido, o cozimento não resolve.
Dá para ter uma ideia de quanto é fiscalizado adequadamente?
Não tem como precisar, mas eu acredito que uns 90% é fiscalizado corretamente. Ou a gente teria uma situação de calamidade pública. Mas é preciso lembrar que as empresas não querem que o produto faça mal para a população porque queima a marca. A fraude é modulada para que o produto seja barato, mas não deveriam usar esses procedimentos porque o consumidor fica sem garantia nenhuma.
O que espera que mude no setor de carnes daqui para frente?
Acredito que será bem melhor e ainda mais confiável. Estão falando nas perdas das empresas e em perdas de empregos. Mas quanto os acionistas perderam com dinheiro de propina? E quais os resultados da concorrência desleal? Quantos frigoríficos foram comprados por quem adquiriu um poderio desmedido? Quanto de dinheiro público em empréstimos foi cedido com base num sistema corrupto? Muito de ruim aconteceu e espero que seja bem melhor a partir de agora.
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