Sem tantas coberturas midiáticas, nem conhecido interesse do cinema nacional como costuma ocorrer nos Estados Unidos, o primeiro caso de insider trading no Brasil foi recentemente objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) (REsp 1.569.171-SP). As ações que ensejaram o crime no âmbito societário ocorreram em 2006, quando dois membros de órgãos da administração da Sadia S.A. foram alertados por uma instituição bancária acerca da possibilidade de realizar a primeira aquisição hostil no mercado acionário brasileiro. O alvo era justamente o controle da grande concorrente Perdigão S.A., que estava prestes a aderir ao Novo Mercado.
A oportunidade de uma oferta pública de aquisição de controle atiçou o interesse de alguns envolvidos na operação, que, usaram informações privadas em benefício próprio desde o início dos estudos da operação societária para compra de ações da Perdigão. As transações com ações anteriores à divulgação de Fato Relevante eram passíveis de gerar vantagens indevidas aos envolvidos, prejudicando o equilíbrio no mercado acionário nacional, diante da ausência de transparência e da igualdade de condições entre todos os investidores.
O insider trading está previsto no artigo 27-D, resultante de alteração legislativa inserida, em 2001, na Lei nº 6.385/1976 (Lei do Mercado de Capitais), definindo como passível de punição quem “utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários”. A pena pode chegar a cinco anos de prisão, além de multa.
No âmbito da CVM, o ilícito já estava previsto desde 1984 (Instrução CVM 31); porém, foi a partir de 2002, por meio da Instrução CVM 358, que se verificou uma atuação mais incisiva da autarquia, diante de uma regulamentação mais severa. Desde então, de acordo com o artigo 13, é vedada, antes da divulgação ao mercado de ato ou fato relevante ocorrido nos negócios da companhia, a negociação com valores mobiliários de sua emissão ou a eles relacionados. A proibição atinge a própria companhia aberta, seus controladores, diretos ou indiretos, membros de qualquer dos órgãos da administração ou de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, ou, ainda, por terceiro que, em virtude de sua posição, venha a ter conhecimento da informação relativa ao ato ou fato relevante.
A expressão insider trading não encontra correspondente direto em nosso idioma, sendo ora preferido seu uso na língua inglesa, ora empregado um longo conceito para se estabelecer uma definição. Essa dificuldade inicial de entendimento favorece divergências de interpretação para caracterização da conduta típica. Além disso, trata-se de crime cometido por altos profissionais que estão “por dentro” de operações complexas e que representam, por vezes, o interesse de uma ou mais pessoas jurídicas, podendo ser difícil individualizar a responsabilidade pessoal e estabelecer a exata culpabilidade.
Outro aspecto que dificulta seu aferimento é estabelecer se a informação negocial é relevante para o mercado de valores mobiliários e, a partir disso, decidir em que momento deveria ser divulgada. No caso em comento, parte das teses de defesa consistia em tentar descaracterizar as informações como sendo relevantes enquanto a decisão de aquisição hostil ainda era estudada na Sadia. Afirmava-se, igualmente, que o mercado nacional não fora prejudicado, uma vez que a compra dos certificados de ações do tipo ADRs (American Depositary Receipts) ocorrera no bojo da Bolsa de Valores de Nova Iorque.
Esse argumento não foi acolhido pelo Poder Judiciário. Ainda na sentença, entendeu-se que “a mera expectativa de realização de um negócio jurídico de vulto deve ser já considerada um fato relevante. […]. A partir do momento em que se tem notícia de algum ato ou fato relevante, deve o administrador ou equiparado se abster de negociar os valores mobiliários que possam ter seus preços afetados”.
De forma semelhante, o STJ assim ementou: “quando o insider detiver informações relevantes sobre sua companhia deverá comunicá-las ao mercado de capitais tão logo seja possível, ou, no caso em que não puder fazê-lo, por entender que sua revelação colocará em risco interesses da empresa, deverá abster-se de negociar com os valores mobiliários referentes às informações privilegiadas, enquanto não forem divulgadas”.
A necessidade de se auferir ou não lucro em razão da conduta também foi enfrentada nos autos. No caso em tela, a aquisição da Perdigão pela Sadia não se confirmou, em razão de questões estatutárias da primeira e também por recusa da maioria de seus acionistas, culminado com a revogação definitiva da Oferta Pública de Ações (OPA) pela segunda. Um dos réus alegou ter até mesmo tido prejuízo com a operação, o que foi rechaçado pelo Judiciário, que caracterizou o crime de insider trading como formal, isto é, prescindindo de produção de resultado para sua consumação. Destaque-se que demorar a revender as ações adquiridas tampouco descaracteriza a conduta apenada. Como citado no acórdão do STJ, do contrário “bastaria ao ‘insider’ simplesmente, após adquirir as ações com base na informação privilegiada, mantê-las em carteira por longo período para descaracterizar a ocorrência de lucro, evitando, assim, a aplicação da multa penal.”
Embora como bem salientado pela Corte, não existe entendimento pacífico sobre o tema na jurisprudência ou doutrina pátrias, pode-se dizer que se assentou ocorrer a prática de insider trading quando a pessoa, vinculada direta ou indiretamente à companhia, usa informações privilegiadas antes de sua divulgação ao mercado de capitais, independentemente da obtenção de lucro ou não. O administrador da companhia ao assim agir fere diretamente com seus deveres de lealdade e de sigilo, merecendo, portanto, maior censura.
Independentemente de terem sido negociados títulos no exterior (em um dos casos, foi inclusive usada uma offshore mantida nas Ilhas Virgens Britânicas), considerou-se ter havido lesão ao mercado brasileiro e não apenas ao norte-americano. As ordens de compra partiram do Brasil e o mercado de capitais é globalizado, havendo influência de um mercado sobre o outro, inclusive reflexos em termos de credibilidade.
Da leitura do acórdão relativo ao caso apreciado pelo STJ, constata-se que o crime não compensou para nenhum dos envolvidos, mesmo que tenha sido reconhecida a prescrição da pretensão punitiva em relação a um dos dois recorrentes que eram vinculados diretamente à Sadia. Em realidade, a prática de insider trading foi julgada não apenas pelo Judiciário brasileiro, mas também na esfera administrativa pela CVM (que atuou, ainda, como assistente de acusação no processo criminal) e também pela U.S. Securities and Exchange Commission (SEC, a correspondente americana da CVM).
Entre as punições aos envolvidos, demissões, penas privativas de liberdade convertidas em prestação de serviços, multas somadas em quantia milionária, suspensões de atuação no mercado brasileiro e também no norte-americano, além de exposição pública relacionada ao ocorrido. Por fim, posteriormente, até mesmo a Sadia teve um final inesperado à época. Após sucessivas operações financeiras mal sucedidas no mercado de derivativos, a situação econômica pela Sadia se deteriorou, favorecendo a incorporação pela Perdigão em 2009; operação que levou à formação da Brasil Foods. Que o ocorrido sirva de alerta aos participantes de operações societárias de grande vulto. As consequências de más decisões podem ser graves.
*Flávia Lubieska Kischelewski, advogada e especialista em direito empresarial. Integra o Departamento Societário de Prolik Advogados
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