O setor de infraestrutura brasileira está em situação lamentável. Há mais de vinte anos não recebe investimentos de envergadura, por meio de planejamento consistente em termos nacionais. Em tempos de recessão e tentativas de retomada do crescimento, esse é um dado extremamente preocupante. Caso persista essa omissão, o desenvolvimento econômico enfrentará dificuldades ainda maiores.
A infraestrutura é representada pelo conjunto de bens e serviços que permitem o desenvolvimento de todas as outras atividades econômicas. O eficiente fluxo entre compradores e vendedores, produtores e prestadores de serviço, requer uma base estável: esta é condição necessária para que as demais atividades gerem resultado positivo. Isso porque de nada vale colher produtos agrícolas ou produzir bens se não houver ferrovias, estradas, portos e aeroportos para transportá-los e permitir sua comercialização. Ausente a infraestrutura, como as unidades produtoras receberão pessoas, produtos primários, energia e combustíveis? Mais: se não houver telecomunicações adequadas, como fazer negócios? Torna-se óbvio que, sem investimentos nesse setor, a economia – pública e privada – terá significativas dificuldades em dar início à retomada do crescimento.
Ocorre que o investimento em infraestrutura tem lá suas peculiaridades. É um setor com poucos agentes aptos a ingressar e permanecer. Os custos são muito altos, com pouca mobilidade do capital aplicado, e o retorno é de longo prazo. A lógica é a dos investimentos de longa maturação: exigem elevados desembolsos de partida, cuja amortização e remuneração demoram décadas (o que exige estabilidade reforçada). É instintivo compreender que projetos de infraestrutura demandam aporte maciço de capital num primeiro momento (pense-se no custo para construir um porto de envergadura, não menos do que U$1bi; ou no gasoduto entre a Bolívia e o Brasil, que custou aproximadamente U$2bi); a fim de permitir a construção integral do bem e sua operação, para que o investimento gere receitas (pois só aí se pode cobrar dos usuários). Isto é, a ferrovia precisa estar pronta – do ponto de partida ao de chegada – para que se possa fazer o transporte e cobrar a respectiva tarifa, de modo fragmentado, de cada um dos usuários. A não ser que seja um contrato de obra pública bastante robusto (pago pelo orçamento público: leia-se tributos), não se recebe em curto prazo a contrapartida. Por isso que, de usual, quem investe nesse setor ou é o Poder Público ou pessoas privadas devidamente habilitadas por ele (concessões comuns, PPPs, autorizações, etc.).
Aliás, não podemos esquecer que o setor de infraestrutura da economia brasileira estava viciado em Poder Público. Este estabeleceu, por meio de investimentos nem sempre responsáveis – seja à custa de empréstimos externos, cuja conta pagamos até hoje, seja por meio de simples emissão de moeda, como se deu com a construção de Brasília (quando não havia nem Banco Central nem, muito menos, a Lei de Responsabilidade Fiscal) – verdadeiros monopólios públicos em toda a base da economia brasileira. O Estado foi treinado a ser irresponsável e os brasileiros viveram na ilusão de que estradas, portos e aeroportos são de graça (atribuíveis à bondade do governante de plantão, que inaugura obras e as chama de “minhas”). Mas, como em todos os vícios, chega uma hora em que o corpo não mais resiste: o adicto precisa se ajudar a receber ajuda. Hoje, todos sabemos quão grande é a mentira de que o Estado possui dinheiro a perder de vista, sem ônus para a população. Igualmente, tomamos conhecimento de que monopólios públicos, autorregulados e sem qualquer controle externo levado a sério, são um convite para a ineficiência (quando não para a corrupção).
Porém, o problema de infraestrutura que hoje vivemos contém uma série de empecilhos adicionais. O primeiro – e mais grave – está no fato de que o Poder Público brasileiro não tem receita para fazer os investimentos. Pior, nem sequer dispõe de caixa para os financiar adequadamente. Ao contrário: no nível federal, além das despesas obrigatórias, pouco será possível fazer com um déficit orçamentário que ultrapassa os R$ 150 bi. Igualmente, há Estados-Membros que não têm dinheiro para pagar salários (quanto mais suas dívidas). Logo, não adianta pensar em mágicas: investimento público não haverá nos próximos anos. Se houver e for significativo, é melhor abrir os olhos.
O segundo problema reside na ausência de capacidade de elevados investimentos por parte das empresas privadas nacionais, combinado com a política de alta dos juros. Todos sabemos que a maioria das grandes empresas brasileiras do setor de infraestrutura terá dificuldades em realizar aportes e obter empréstimos nos próximos anos. Os bancos delas desconfiam, o que inibe a concessão de empréstimos. Atualmente, preocupam-se mais em resolver os problemas do passado e instalar novas racionalidades na administração de seus negócios.
A combinação dessas duas constatações leva a atenção ao exterior, para o investimento estrangeiro. Sem dúvida alguma, há investidores estrangeiros – sociedades empresariais do setor de infraestrutura; fundos soberanos; fundos de investimento – que têm interesse em contratos de longo prazo, os quais exijam aportes maciços ao início e perspectivas de ganhos depois de décadas. Tais investidores detêm competência para executar obras dessa magnitude (basta pensar na infraestrutura europeia, chinesa e norte-americana), bem como administrar a sociedade de propósito específico que assumirá o projeto. Mas, do que precisam para ter interesse em vir, investir e ficar?
Quando menos de um dado essencial: segurança jurídica, tanto ao início da contratação, quanto durante o seu desenvolvimento, até o último dia do contrato. Além de não gerarem qualquer respeito, ambientes institucionalmente inseguros têm altíssimos custos de transação: o contrato não custará apenas o relativo a pessoas, bens e serviços alocados, mas também desembolsos de burocracia, tempo, variações imprevistas, riscos e incertezas, cláusulas exorbitantes – quando não a corrupção. Contudo, as licitações internacionais brasileiras antes se parecem com um labirinto, com poucos fios condutores que permitam encontrar a saída.
Como eu tive a oportunidade de escrever em artigo em parceria com os professores Bernardo Strobel Guimarães e Lino Torgal (publicado na Revista de Direito Administrativo – RDA 269), as denominadas “licitações internacionais” brasileiras têm gerado grandes incertezas, tanto para as empresas brasileiras, como para as estrangeiras. Nem mesmo a Lei 8.666/1993 é clara o suficiente ao manejar a expressão licitação internacional, não lhe dispensando qualquer disciplina uniforme. Se existe enorme dificuldades para que nós, brasileiros, compreendamos tais licitações internacionais, imaginem os estrangeiros (bem verdade que tais emaranhados normativos não surgem do acaso: trata-se de barreira de entrada construída com maestria pelo legislador brasileiro).
Assim, caso levemos a sério a necessidade de investimentos estrangeiros no setor de infraestrutura, é preciso melhorar o ambiente de negócios públicos, inclusive com postura mais amigável e respeitosa em relação a quem vem de fora. Existem alguns dados práticos que melhorariam a acolhida. Vou tratar de apenas dois deles, sabedor de que existem muitos mais.
Que tal permitir que empresas estrangeiras liderem os consórcios que participarão das licitações? O artigo 33, § 1º, da Lei 8.666/1993 simplesmente proíbe que elas liderem os consórcios. O motivo para essa proibição não resiste a argumentos sérios. Ora, se a sociedade empresarial pretende fazer aportes (dinheiro, tecnologia – o que quer que seja), como convencê-la que é bom ser liderada por brasileiros que não dispõem daquilo que faz com que ela, empresa estrangeira, seja tão importante para a licitação? “- Preciso muito de você para vencer a licitação, mas é necessário que eu seja o chefe” não é uma frase muito sedutora, convenhamos. Uma medida provisória resolveria este contratempo: basta revogar o dispositivo (ou redigir outro, que permita a liderança de empresa estrangeira).
Por outro lado, que tal haver editais em inglês, expostos em fóruns internacionais e via internet? Editais que efetivamente minudenciem como os estrangeiros poderão participar da licitação (inclusive, com a explicação de como pode ser cumprido, em termos internacionais, a muitas vezes tenebrosa habilitação técnica exigida pelos atos convocatórios). Parece algo banal, mas ajudará em muito na divulgação e na compreensão das licitações. Todos sabemos que o idioma inglês é a língua universal destes tempos. De igual modo, alguns requisitos dos editais precisam ser adaptados às legislações estrangeiras: nada melhor do que dizer, de antemão, como isso pode ser resolvido. Ficaria mais fácil e bem mais amigável.
Por fim, o mais importante: quem fala em segurança jurídica trata de um assunto simples, que é o respeito ao pactuado. O simples dever de efetivamente cumprir os contratos. A clareza de regras que proíbam excentricidades políticas e intervenções exorbitantes. Só a estabilidade assegura a certeza de que o contratado será tratado com lealdade. Os contratos administrativos, sobretudo os que envolvem investimentos de longa maturação, precisam ser integralmente respeitados. Afinal de contas, licitações são processos complexos, que envolvem a fase interna (muitas vezes com audiências e consultas públicas, além do controle externo pelos Tribunais de Contas e Ministério Público), a competição externa (com ofertas de preços e exames minuciosos da habilitação técnica, jurídica e econômica) e a celebração e execução do contrato.
Logo, quem assina um contrato administrativo que durará 10, 20 ou 30 anos parte do pressuposto de que ele será respeitado na integralidade do seu prazo e que não será usado de forma vil, como se fosse mais uma moeda de troca eleitoral (gerando custos para as presentes e futuras gerações). Imagina que a Administração Pública será leal e atuará de boa-fé. Infelizmente, não é isso que se assiste: o contrato hoje assinado é desrespeitado amanhã, sem qualquer pudor. Porém, sem que se tenha segurança jurídica nos contratos administrativos, não haverá estrangeiros interessados em investir na infraestrutura brasileira. Ou melhor e pensando bem, nem brasileiros, nem estrangeiros: ninguém, salvo os oportunistas, levará a sério os contratos administrativos.
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*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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