1. Uma via intermediária
Como foi dito na coluna anterior, o Projeto de Emenda à Constituição nº 171/1993 (com a Emenda Aglutinativa nº 16), foi aprovado em primeira discussão na Câmara dos Deputados para alterar a redação do art. 228 da Constituição a fim de responsabilizar penalmente os menores de 16 e 18 anos incompletos pelos crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Em se tratando de matéria constitucional a alteração depende de mais uma votação na Câmara e duas outras no Senado Federal. Antes, porém, que isso ocorresse, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 333, de 2015, que altera disposições do Código Penal, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°8.069/1990) e do SINASE, Sistema Nacional Socioeducativo (Lei nº 12.594/2012).
Esse disegno di legge foi apresentado pelo Senador José Serra e já contava com o apoio do Governador Geraldo Alckmin e do Ministério da Justiça como uma via intermediária entre o regime atual entre o dispositivo constitucional e o art. 121, § 3º do ECA [1], considerado muito leniente, e o rebaixamento da maioridade penal para 16 anos, tido como muito gravoso.
Em meu entendimento, essa orientação é a mais adequada como tenho sustentado em diversas oportunidades. O ideal será manter a redação vigente do art. 228 da Constituição Federal e do art. 27 do Código Penal, em face da absoluta deficiência das prisões brasileiras, mas com modificações em dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse é também o pensamento de Guilherme de Souza Nucci, sustentando a necessidade de “punições mais severas a determinados adolescentes infratores, tratados, hoje, com extremada leniência, apesar dos gravíssimos atos infracionais que praticam” [2].
2. A proposta acolhida pelo Senado Federal
As modificações mais relevantes do ordenamento positivo, conforme o Projeto de Lei nº 333, de 2015, são as seguintes: a) O art. 61 do Código Penal é acrescido da letra “m” ao inciso II, para declarar como agravante “ter o agente cometido o crime com a participação de menor de dezoito anos de idade”; b) ampliar para 10 (dez) anos o tempo de internação do menor infrator, sob a designação de Regime Especial de Atendimento, quando o fato praticado for equivalente aos crimes hediondos previstos nos incisos I a VI da Lei nº 8.072, de 25.07.1990 [3]; c) automaticamente, quando o jovem completar dezoito anos durante o cumprimento desse regime, independentemente de qualquer avaliação; d) fica mantido o limite máximo de contenção em 3 (três) anos para outros tipos de infração.
3. O fundamento da inimputabilidade
A inimputabilidade criminal dos menores de 18 anos envolve uma presunção de caráter absoluto (iure et de iure). O critério adotado pela legislação é o biológico. A propósito, a lição de Figueiredo Dias, acentuando que a imputabilidade deve ser excluída relativamente a qualquer agente que não atingiu ainda, em virtude da idade, a sua maturidade psíquica e espiritual. Trata-se, para o prestigiado mestre de uma “conclusão que não é posta em dúvida. E, todavia, deve indagar-se do fundamento de tal conclusão. Em nossa opinião esse fundamento é, no fundo, da mesma índole daquele que dá base à inimputabilidade em função de anomalia psíquica: tal como uma certa sanidade mental é condição de apreciação da personalidade e da atitude em que ela se exprime, também o é um certo grau de maturidade. Só quando a pessoa pratica uma acção num estágio de desenvolvimento em que já lhe é dada a plena consciência da natureza própria das vivências que naquela se manifestam se torna patente ao julgador a conexão objectiva de sentido entre o facto e a pessoa do agente. Isto, porém, uma vez mais, não há-de entender-se no sentido de que, antes de atingido um tal estádio de evolução pessoal, não presida já ao existir um ser-livre que torna a pessoa substancialmente responsável: um tal ser-livre é um existencial e, portanto, uma função originária, segundo a sua essência, do existir humano. Do que se trata é pois - como na inimputabilidade fundada em anomalia psíquica - da impossibilidade, para o juiz, de apreensão das conexões no sentido objectivo que derivam da atitude da pessoa do agente e se exprimem no facto. (...) Além das razões expendidas, a colocação desta barreira etária intransponível à intervenção penal funda-se - em estrita perspectiva político-criminal - em um princípio de humanidade que deve caracterizar todo o direito penal de um Estado de direito material. Deve evitar-se a todo o custo a submissão de uma criança ou adolescente às sanções mais graves previstas no ordenamento jurídico e ao rito do processo penal, pela estigmatização que sempre acompanha a passagem pelo corredor da justiça penal e pelos efeitos extremamente gravosos que a aplicação de uma pena necessariamente produz ao nível dos direitos da personalidade do menor, marcando inevitavelmente o seu crescimento e toda a sua vida futura” [4].
Pode-se acrescentar afirmando que a questão da menoridade penal é, antes de tudo, um assunto que não se concilia com a indagação sobre a idade do adolescente quanto à sua compreensão sobre a ilicitude do fato que não pode, geralmente, ser negada em relação ao menor de dezoito e maior de dezesseis anos, máxime quanto a certas modalidades de crimes contra a pessoa e o patrimônio. O tema, portanto, refoge às especulações em torno da culpabilidade para ser considerado como orientação de Política Criminal que, na frase lapidar, de LISZT é a sabedoria legislativa do Estado. A Política Criminal e o Direito Penal atuam como vasos comunicantes da realidade social. No processo de seleção dos bens jurídicos a serem protegidos e das normas penais lato sensu desenham-se o perfil da sociedade e o modelo estatal na prevenção e na repressão da criminalidade. O Código Penal e as leis especiais são frutos de uma determinada vontade política manifestada pelos cidadãos através de seus representantes junto aos poderes do Estado. A professora Maria Auxiliadora Minahim pondera muito bem que “t ratar da redução da menoridade no Brasil, fazendo com que alguns cidadãos nele [intervenção do sistema penal] ingressem antecipadamente, pode realizar apenas a função simbólica, criando a impressão de segurança jurídica” [5].
4.A permanente crise do sistema prisional
Gerard Bauër (1888-1967) escritor francês, editor do famoso jornal francês Le Figaro, resume em poucas palavras o fenômeno político da indiferença da Administração Pública diante do condenado mundo das prisões: “Há uma coisa ainda pior do que a infâmia das cadeias; é não mais lhes sentir o peso”.
O princípio da dignidade da pessoa humana, proclamado entre os primeiros dispositivos da Carta Política nacional, se opõe ao rigor de tratar o adolescente no mesmo nível de privações e restrições sofridas pelos infratores adultos. A doutrina brasileira, invariavelmente, manifesta-se contra a redução da maioridade penal tendo como sustentação elementar o contágio dos dramas e das tragédias do condenado mundo das prisões, já definidas por alguém como “erros monumentais talhados em pedra”.
A síntese desse pensamento crítico é exposta por Hamilton Belloto e Gisela Mendes: “Não construímos o Estado do Bem-Estar Social. Não suprimimos a fome, não fomentamos o pleno emprego, não igualamos a sociedade, como o projeto constitucional nos impele. Vamos, no entanto, encarcerar crianças e adolescentes. Vamos reduzir a mão de obra excedente, que vive, ou que sobrevive nas periferias, a um bando de encarcerados, vamos profissionalizar a juventude em carreiras criminais formadas dentro do nosso pernicioso sistema carcerário. Faremos história construindo um Direito Penal máximo, que tudo pune e nada resolve” [6]. (”Redução da maioridade penal: a política criminal da pós-modernidade”, em Boletim, 249/2013, p. 4)
5. A contradição entre a teoria e a prática
“As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”. Esta foi a proclamação da Carta Política de 25 de março de 1824 (art. 179, §21).
Do Império que estava surgindo, após a colonização portuguesa (1500-1822) e até a República Federativa, constituída em Estado Democrático de Direito e que tem, em seu primeiro artigo e como um de seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana”, o que mudou? Entre o texto da Carta Política outorgada por Dom Pedro I (1824), que declarou abolidos “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” e os dispositivos da Constituição Cidadã (1988), ao afirmar que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” e que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, qual foi a mudança?
Pouca ou quase nenhuma. Nem mesmo o conteúdo do discurso religioso e da pregação dos defensores dos Direitos Humanos. Salvo quanto às embalagens que cobrem as mesmas e antigas promessas. A propósito, o art. 300 do Código de Processo Penal, com a redação que lhe deu a recente Lei nº 12.403/2011, adverte: “As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal”.
Existem fatos no universo da marginalidade social que revelam, com notável frequência, as sucursais do Inferno por onde desfilam seres desafortunados (crianças, velhos, doentes, presidiários) que são destinatários dos dejetos da sociedade e, com grande frequência, vítimas da injustiça, indiferença, preconceito e exclusão que funcionam como pontos cardeais das viagens para portos desconhecidos.
Aliás, as primeiras palavras denunciando esses campos de concentração em tempos de paz vêm de autoridades responsáveis pela segurança pública. Essas bombas, se não forem desativadas, vão estourar também no colo dos funcionários e dos vizinhos desses depósitos de seres humanos. A caótica situação como, por exemplo, da convivência imposta entre delinquentes perigosos e acusados primários ou simples suspeitos, derruba um dos fundamentos da República que é a dignidade da pessoa humana e desmente o princípio da presunção de inocência, estabelecido em nossa Carta Política: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
As cadeias públicas do país, de um modo geral, são servidões de passagem para o terror. Um mural infinito onde se desenham, à imagem das antigas inscrições, o sofrimento e o desespero. Assim como nos recorda a palavra imortal de um ex-presidiário: “Para lá do portão ficava o mundo luminoso da liberdade, que do lado de cá se imaginava como uma fantasmagoria, uma miragem. Para nós, o nosso mundo não tinha nenhuma analogia com aquele; compunha-se de leis, de usos, de hábitos especiais, de uma casa morta-viva, de uma vida a parte e de homens a parte” (Fiódor Dostoievski, 1821-1881, “Recordações da casa dos mortos”).
6.Uma avaliação concreta sobre menores infratore s
No ano de 2000, o Ministro da Justiça, José Carlos Dias, constituiu a Comissão de Diagnóstico do Sistema Criminal, integrada por Alberto Silva Franco, Edson O’ Dweir, Ivette Senise Ferreira, Jair Leonardo Lopes, Luís Fernando Ximenez, Luiz Vicente Cernicchiaro, Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Nilo Batista, René Ariel Dotti, Miguel Reale Júnior (coordenador) e Eduardo Reale Ferrari (secretário).Com dados oriundos do Ministério Público, do Poder Judiciário e outras fontes, constatou-se que se houve aumento, não significativo, da participação de adolescentes na prática de crimes, especialmente, roubo, a cifra era incomparavelmente menor que o número de crimes de responsabilidade de maiores entre 18 (dezoito) e 25 (vinte e cinco) anos [7].
A pesquisa de campo procedeu à observação de fatos e fenômenos exatamente como ocorrem no real, à coleta de dados referentes aos mesmos e, finalmente, à análise e interpretação desses dados, com base numa fundamentação teórica consistente, objetivando compreender e explicar o problema pesquisado. Ciência e áreas de estudo, como a Antropologia, Sociologia, Psicologia, Economia, História, Arquitetura, Pedagogia, Política e outras, usam frequentemente a pesquisa de campo para o estudo de indivíduos, grupos, comunidades, instituições, com o objetivo de compreender os mais diferentes aspectos de uma determinada realidade. Exige também a determinação das técnicas de coleta de dados mais apropriadas à natureza do tema e, ainda, a definição das técnicas que serão empregadas para o registro e análise. Dependendo das técnicas de coleta, análise e interpretação dos dados, a pesquisa de campo poderá ser classificada como de abordagem predominantemente quantitativa ou qualitativa. Segundo a ponderada opinião de Silva Franco, numa pesquisa em que a abordagem é basicamente quantitativa, o pesquisador se limita à descrição factual deste ou daquele evento, ignorando a complexidade da realidade social.