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1.Introdução

Como é notório, o Senado Federal aprovou o Substitutivo do Projeto de Lei nº 236, de 2012, que institui um novo Código Penal apesar das inúmeras e vigorosas críticas da comunidade de especialistas, como se verifica pelo minucioso levantamento feito por Alaor Leite [1]. Abstraindo o aspecto da análise da ideologia da tentativa de reforma, dos trabalhos das subcomissões responsáveis pela elaboração do anteprojeto que lhe serviu de base e de alguns assuntos pontuais, é oportuno fazer algumas considerações sobre critérios para a redação de uma Parte Especial do diploma criminal.

Com muita propriedade Juarez Tavares acentua que o Direito Penal deve ser compreendido “no contexto de uma formação social, como matéria de prática social e política, como resultado de certo processo de elaboração legislativa, onde a estrutura jurídica se afirma em suas relações com as forças sociais hegemônicas, atuantes no Parlamento. Hoje, pode-se dizer que a norma incriminadora não é um ente meramente abstrato e neutro como pensava Kelsen, como forma exclusiva de imposição de deveres para a satisfação da ação própria de sancionar, mas o sucesso da interação dos interesses que se manifestam, no processo de sua elaboração” [2]. E indica os seguintes critérios norteadores da atividade legiferante: a) a proteção da dignidade da pessoa humana; b) a proteção do bem jurídico; c) a necessidade da pena; d) a intervenção mínima; e) a proporcionalidade; f) o compromisso com as categorias lógico-objetivas [3].

Segundo o magistério de Silva Franco, algumas diretivas se impõem para a tarefa de revisão (e consolidação) da Parte Especial do Código Penal. Elas são relacionadas como ideias-força e comportam a seguinte síntese: a) a necessidade de adequação às normas da Carta Política de 1988 e aos tratados e convênios internacionais; b) a dignidade da pessoa humana como limitação material ao exercício do poder punitivo do Estado; c) a lesão ou o perigo de lesão aos bens jurídicos socialmente relevantes; d) a obediência ao princípio de intervenção mínima; e) a adoção de normas técnicas de composição de tipos e de cominação de penas, com aptidão para assegurar maior certeza do Direito; f) fazer da Parte Especial “o centro do sistema penal, reduzindo, correlativamente, o peso da legislação especial, que assumiu proporções absurdas”; g) a solução de pontos de divergência assinalados pela jurisprudência [4].

2.O processo seletivo dos bens a proteger

A distribuição das variadas hipóteses de ilicitude na Parte Especial do Código Penal depende de um critério de Política Criminal, considerada como o conjunto sistemático de princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das infrações penais. Compete à Política Criminal fornecer e avaliar os critérios para se apreciar o valor do Direito vigente e revelar o Direito que deve vigorar; cabe-lhe ensinar-nos também a compreender o Direito à luz de considerações extraídas dos fins a que ele se dirige e a aplicá-lo nos casos singulares em atenção a esses fins [5]. Em síntese, pode-se afirmar que a Política Criminal é a sabedoria legislativa do Estado na luta contra as infrações penais.

A Parte Especial de um Código Penal deve prever as condutas consideradas mais reprováveis pela generalidade das pessoas. Algumas delas como os atentados à vida, à integridade, à liberdade, à honra, à saúde pública e ao patrimônio material guardam as mais antigas e variadas formas de reação individual ou coletiva. Dentro dessa perspectiva, os delitos a serem regulados em uma Parte Especial, segundo a natureza do bem jurídico defendido, devem ser os que atentam contra a vida, a integridade corporal, a liberdade, a segurança, a saúde e a incolumidade públicas, o patrimônio, etc.

3.O princípio da intervenção mínima

A revisão do atual panorama de ilicitudes para os fins de descriminalização, despenalização ou neo-criminalização deve ter em consideração o princípio de intervenção mínima, sem prejuízo de consolidar a legislação que diz respeito aos valores e aos interesses de tutela dos bens jurídicos nucleares.

Com efeito, duas grandes tendências ideológicas disputam nos dias correntes as preferências dos estudiosos da teoria e da prática das ciências criminais. Ambas radicalizantes e inconciliáveis. A primeira é sintetizada pelo movimento de lei e de ordem que tem como expressão de maior propaganda o discurso político do crime, caracterizado pela denúncia da falência das instâncias formais de prevenção e repressão e pelo usufruto do poder político e de comunicação de massa. A segunda é representada pelo movimento abolicionista do sistema penal. Mas existe uma via intermediária entre tais posições extremadas: é o movimento do direito penal mínimo. Ele propõe a utilização restrita do sistema penal na luta contra o delito.

Segundo clássica lição da doutrina, apoiada pela jurisprudência, o Estado somente deve recorrer à pena criminal quando não houver, no ordenamento positivo, meios adequados para prevenir e reprimir o ilícito. São muito apropriadas e atuais as palavras do eminente e pranteado Ministro Nélson Hungria: “Somente quando a sanção civil se apresenta ineficaz para a reintegração da ordem jurídica é que surge a necessidade da enérgica sanção penal. O legislador não obedece a outra orientação. As sanções penais são o último recurso para conjurar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a reação penal”[6].

No mesmo sentido, o jurista português Souza e Brito salienta que, traduzindo-se a pena em restrições ou sacrifícios importantes dos direitos fundamentais do acusado, cujo respeito é uma das finalidades essenciais do Estado, é indispensável que tal sacrifício seja necessário à paz e conservação sociais, isto é, à própria defesa dos direitos e das liberdades e garantias em geral que constituem a base do Estado. E arremata: “É este o princípio da necessidade ou da máxima restrição das penas e das medidas de segurança (art. 18º, nº 2e3), que está ligado ao princípio da legalidade (art. 29º) e ao princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, como garantia da máxima objectividade e do mínimo abuso” [7].

Como é evidente, o princípio da intervenção mínima deve, obrigatoriamente, ser atendido pelo Poder Legislativo através de critérios sólidos na elaboração da lei penal, elegendo apenas os bens jurídicos dignos de proteção pelo Direito Penal e que guardam estreita relação com a Constituição. Esse dever institucional também obriga o Poder Judiciário, “extirpando o ranço jurídico da tipicidade legal, para uma tipicidade penal, esta sim compatível com um Estado Democrático de Direito”.

E no quadro da individualização da pena é fundamental que o magistrado aplique esse generoso princípio para eleger as alternativas à prisão sempre que possível. São várias as consequências da adoção desse princípio em outros quadros da ciência penal. Entre eles “convém destacar o princípio de humanidade e o princípio de proporcionalidade, por este aspecto conectando com o princípio de legalidade e da culpabilidade” [9].

4.A codificação de regras mínimas

A ser adotada a proposta no sentido de se institucionalizar os microssistemas criados pelas leis especiais, dando-lhes, entanto, uma disciplina normativa compatível com os princípios fundamentais do Direito Penal, torna-se indispensável que os primeiros dispositivos da Parte Especial estabeleçam algumas regras mínimas afim de que a elaboração das normas incriminadoras previstas no próprio Código e nos diplomas extravagantes se subordine a princípios e regras que devem ser adotados para a composição dos tipos de ilicitude.

A propósito, o Anteprojeto de Código Penal argentino, elaborado por Comissão presidida por E. Raúl Zaffaroni (cf. o Decreto P.E.N. 678, de 2012), contém uma relação de

princípios para a aplicação da lei penal, no primeiro artigo da Parte Geral. São eles:

1. Principios constitucionales y de derecho internacional. Las disposiciones del presente Código se interpretarán de conformidad con los principies constitucionales y de derecho internacional consagrados en tratados de igual jerarquía.

2. Se aplicarán con rigorosa observancia los siguientes principies, sin perjui¬cio de otros derivados de las normas supremas señaladas:

a) Legalidad estricta y responsabilidad. Solo se considerarán delitos las ac¬ciones u omisiones expresa y estrictamente previstas como tales en una ley for¬mal previa, realizadas con, voluntad directa, salvo que también se prevea pena por imprudencia o negligencia.

No se impondrá pena ni otra consecuencia penal del delito, diferente de las señaladas en ley previa.

b) Culpabilidad. No habrá pena sin culpabilidad ni que exceda su medida. Para la determinación del delito y de la pena no se tomarán en cuenta el repro¬che de personalidad, juicios de peligrosidad ni caras circunstancias incompati¬bles con la dignidad y la autonomía de la persona.

c) Ofensividad. No hay delito sin lesión o peligro efectivo para algún bien jurídico.

d) Humanidad, personalidad y proporcionalidad. Se evitará o atenuará toda pena que por las circunstancias del caso concreto resultare inhumana, trascendiere gravemente a terceros inocentes o fuere notoriamente desproporcionada con la lesión y la culpabilidad por el hecho [10].

Abordando o assunto de uma sistematização da Parte Especial, Heleno Fragoso refere o trabalho de Grispigni, objetivando a construção de uma teoria geral do elemento objetivo do crime. O mestre italiano propôs o estudo de grupos de crimes, reunidos segundo elementos constitutivos comuns de sua estrutura objetiva. Na lamentação de Fragoso, aquela obra “infelizmente inacabada, apresenta-se como o delineamento de um programa de trabalho para a tarefa proposta”.

Apesar de abandonada a idéia de uma rigorosa sistematização da Parte Especial dos códigos, algo parecido com uma parte geral introdutória, a doutrina dos grandes mestres não renunciou à necessidade de se organizar uma sistematização, pelo menos relativa. Nesse sentido é o entendimento de Antolisei, conforme suas próprias palavras: “ Se l’idea di una Parte generale della Parte speciale deve essere scartata per la sua palese inconsistenza, non può seriamente dubitarsi della necessità di una maggiore elaborazione della materia, da effetuarsi con intendimenti non puramente descrittivi, ma scientifici (o dogmatici che dir si voglia)” [12]. Entre nós, a mesma orientação é adotada por Anibal Bruno [13].

Essas regras mínimas da Parte Especial serviriam não somente para demarcar a estrutura das infrações e das respostas penais previstas no Código – incluídas as outras matérias - como também para fixar os limites da legislação especial que deve ter, sempre, um caráter complementar. Algumas dessas coordenadas podem ser referidas como, por exemplo: a) a excepcionalidade dos tipos penais abertos; b) a adoção de normas técnicas de redação dos tipos e de cominação de penas, com aptidão para assegurar maior certeza do Direito e melhor efetividade da Justiça; c) a declaração de que o crime praticado através dos meios de comunicação será objeto de pena especialmente agravada; d) a indicação dos crimes perseguidos mediante ação penal de iniciativa privada; e) as condições de processabilidade; f) a condição pessoal do autor para as hipóteses de exclusão do crime ou isenção de pena; g) as modalidades especiais de extinção da punibilidade . Não entram nessa relação as causas especiais de aumento ou diminuição de pena ou as circunstâncias qualificadoras posto serem inerentes à própria natureza e fisionomia particular do crime descrito em seu tipo fundamental.

Algumas dessas cláusulas de barreira têm o objetivo de sistematização, evitando-se repetições desnecessárias; outras, porém, destinam-se a fazer da linguagem penal um requisito de segurança jurídica, além de conservar princípios fundamentais de um Direito Penal melhor adequado às aspirações de justiça e segurança. Entre eles deve-se destacar a exigência da culpabilidade, que tem a sua raiz na dignidade humana, erigida em fundamento do Estado Democrático de Direito (CF art. 5.º, III). Todas essas indicações comportariam longa e judiciosa fundamentação, tarefa que se remete a um posterior e eventual texto.

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1 .Vide, na publicação em anexo, “O concurso de pessoas no direito brasileiro...”, o item nº 13.

2. “Critérios de seleção de crimes e cominação das penas”, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, 1992, p. 75.

3. Tavares, Juarez. Ob. cit., p. 77/85.

4. “A reforma da Parte Especial do Código Penal – Propostas preliminares”, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, cit. n.º 3, de 1993, p. 70 e s.

5. Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal Allemão, trad. de José Hygino Duarte Pereira, Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia. Editores, tomo I, p. 3).

6. Comentários ao Código Penal, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. VII, p. 178.

7. “A lei penal na Constituição”, em Estudos sobre a Constituição, Lisboa: Livraria Petrony, 1978, vol. 2º, p. 200.

8. ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no Direito Penal brasileiro, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001, p. 153-154.

9. Cf. BUSATO, Paulo Cesar - HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal-Fundamentos para um sistema penal democrático, 2. ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 164.

10. O disegno di legge está publicado em Anteproyeto de Código Penal de la Nación: Aportes para unm debate necesario, Eugenio Raúl Zaffaroni y Roberto Manuel Carlés: coordinado por Matías Bailone, 1.ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Thomson Reuters, La Ley, 2014.

11. Lições de Direito Penal – Parte Especial, Rio de Janeiro: Forense, 1986, vol. I, p. 10.

12. ANTOLISEI, Francesco. Manuale di diritto penale – Parte speciale, Milano: Dott. A . Giuffrè Editore, 1966, vol. I, p. 12.

13. Direito Penal – Parte Especial, Rio de Janeiro: Forense, 1966, tomo 4.º, p. 30/33.

14. Perdão judicial (CP arts. 140, § 1.º; 242, parág. ún., etc.) e o pagamento do tributo, por exemplo.

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