[É]”perceptível a reação diferenciada de testemunhas quando indagadas pelo acusador, sentado no alto e ao lado do juiz, e depois pelo advogado, sentado no canto mais baixo da sala ao lado do réu. É preciso colocar em pé de igualdade, formal e material, acusação e defesa”. (Juiz Ali Mazloum)
Aproveito hoje o espaço da coluna para reeditar um artigo publicado originalmente na coletânea Estudos críticos sobre o sistema penal (2012), em homenagem ao ilustre colega Professor Juarez Cirino dos Santos, em comemoração ao seu 70º aniversário.
Como é possível perceber, o tema é da maior atualidade e relevância porque pende, no Supremo Tribunal Federal, o julgamento do mérito de uma Reclamação que sustenta a necessidade de aplicação do princípio de paridade de armas que está sendo vulnerado, durante a realização das audiências, pelo nível desigual dos assentos reservados ao agente do Ministério Público e ao Advogado de defesa.
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Um assunto aparentemente despido de relevo prático chega à maior Corte Judiciária do país. O Juiz titular da 7ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo, Ali Mazloum, ingressou com uma Reclamação (nº 12011) no Supremo Tribunal Federal para que seja dado tratamento isonômico entre acusação e defesa nas audiências criminais realizadas no âmbito da Justiça Federal brasileira [1].
No pedido, o sensível, lúcido e intimorato magistrado investe contra decisão liminar de uma Desembargadora Federal mantendo dispositivo legal (manifestamente inconstitucional) e a praxe forense para que o agente do Ministério Público permaneça sentado “ombro a ombro” com o Juiz durante a realização das audiências.
A questão tem o seu ponto fulcral na regra do art. 18, I, a da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, declarando ser uma das prerrogativas institucionais dos membros do Ministério Público da União, “sentar-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem”.
Na Reclamação, o Juiz Ali Mazloum argumenta que, para garantir tratamento igualitário entre os representantes do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública (DPU) ou da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi editada a Portaria 41/2010. A norma, de caráter jurisdicional, pretende dar efetividade à Lei Orgânica da Defensoria Pública (LC 80/1994 e LC 132/2009).
Assim, segundo explica o magistrado, como não havia espaço físico na sala de audiência para acomodar ao lado do Juiz também o representante da defesa em uma audiência, a exemplo do que ocorria com o representante do Ministério Público, ficou determinado o assento de todos “no mesmo plano, e colocou-se o assento do MPF ao lado do assento reservado à defesa (DPU e OAB), à mesa destinada às partes.”
O Ministério Público Federal contestou na Justiça a validade da portaria, alegando que ela violou o referido diploma. Ao analisar a ação proposta pelo MPF contra a Portaria 41/2010, a juíza relatora do caso, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), concedeu liminar suspendendo a determinação. Contra esta decisão, o Juiz Ali Mazloum acionou o Supremo Tribunal Federal.
No referido procedimento, o seu ilustre autor salienta que ainda não havia sido notificado da decisão e que está impedido de exercer a sua jurisdição em sua plenitude em face da liminar. E que compete ao juiz natural “assegurar a paridade de tratamento entre acusação e defesa”. Em sua avaliação houve equívoco na interpretação do dispositivo estatutário do Ministério Público da União, além da divergência com precedente da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal constante do Recurso de Mandado de Segurança (RMS), nº 21884.
Prestando um testemunho altamente qualificado pela sua experiência, o Doutor Mazloum afirma ser “perceptível a reação diferenciada de testemunhas quando indagadas pelo acusador, sentado no alto e ao lado do juiz, e depois pelo advogado, sentado no canto mais baixo da sala ao lado do réu. É preciso colocar em pé de igualdade, formal e material, acusação e defesa”.
O assunto está em discussão no Supremo Tribunal Federal [2] e no Conselho Nacional de Justiça havendo possibilidade de decisões divergentes entre os dois órgãos. Daí porque o pedido de concessão liminar na Reclamação para, desde logo, solucionar a eventual controvérsia em relação a todos os membros da magistratura federal. E, no mérito, pede que seja declarado inconstitucional o artigo 18, I, a, da LC 75/93 e mantido o teor da Portaria 41/2010 da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo como modelo válido para toda a magistratura “com vistas a assegurar paridade de tratamento entre acusação e defesa durante as audiências criminais”.
A iniciativa da Reclamação tem ampla justificação como se poderá verificar pelo art. 4º, § 7º, da Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei nº 80/1994) que estabelece: “Aos membros da Defensoria Pública é garantido sentar-se no mesmo plano do Ministério Público”. O ponto de partida é o princípio da igualdade entre a acusação e a defesa durante a prática de atos judiciais realizados na presença de ambos os representantes das partes.
No início do presente artigo está dito que o assunto é “aparentemente despido de relevo prático”. Mas, à luz do princípio constitucional de igualdade de todos perante a lei (art. 5º, caput e inc. I) e de sua consequência lógica da isonomia processual e a sua transparência pública, o tema assume notável amplitude científica. Em uma de suas lições, Lauria Tucci e Cruz e Tucci, observam com absoluta razão que um dos consectários do due process of law firma-se no denominado “princípio da isonomia processual, determinante do tratamento prioritário dos sujeitos parciais do processo”.
Em meu entendimento, a questão deve ser resolvida com base nos princípios constitucionais que asseguram o equilíbrio de armas entre os representantes das partes em litígio. A paridade não se esgota, vale enfatizar, nas iguais possibilidades oferecidas à acusação e à defesa para o cumprimento de suas função (prazos, limitação quanto à prova, etc.), mas, também, deve considerar outros aspectos e, entre eles, à postura física do procurador junto ao presidente da audiência de modo a sugerir a impressão de quebra de outro princípio fundamental no processo penal democrático: a imparcialidade do Juiz
A decisão que revogou a Portaria fundou-se no já referido art. 18, I, a, da LC nº 75/1993. Essa regra mostra um preciosismo aristocrático no exercício do poder incompatível com princípios que na Constituição Federal de 1988 distinguem o Ministério Público como instituição defensora do regime democrático e de interesses sociais, além de outros relevantes bens e valores da comunidade. A imposição de sentar “ombro a ombro” com o juiz durante a audiência, assim como ocorre na praxe forense revela-se autoritária e discriminatória em relação à figura, também institucionalizada, do Advogado que é “indispensável à administração da justiça” (CF, art. 133) e que, no seu ministério privado, “presta serviço público e exerce função social”(Lei nº 8.906/1994. Estatuto da Advocacia e da OAB).
Essa arquitetura de constrangimento funcional vai mais longe. Ela dissimula a real posição que devem ostentar as partes em um processo conduzido pelos princípios e regras do Estado Democrático de Direito. Perante a testemunha, o ofendido, o perito e o acusado, a posição física do órgão do MP, ombreando com a cadeira do magistrado que dirige a audiência, aparenta uma superioridade funcional hierárquica perante o defensor que tem o seu lugar no mesmo nível em que estão sentados esses participantes da ação penal.
A iniciativa do Juiz Mazloum ao STF assume extraordinária repercussão acadêmica e profissional ao tempo em que o Juiz de Direito Substituto da 1ª Vara Criminal e Juizados Especiais Criminais do Foro Regional de Restinga, Porto Alegre (RS), Mauro Caum Gonçalves, nos autos do Procedimento administrativo nº 02/2011, atendeu, em 19 de julho, o pedido da Defensoria Pública para remanejar os móveis da sala de audiências. A pretensão deferida se fundou no § 7º do art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994, que reza: “Aos membros da Defensoria Pública é garantido sentar-se no mesmo plano do Ministério Público”.
É oportuna a transcrição de alguns trechos desse notável precedente: “Assim, ao atribuir ao Parquet, privativamente, a ação penal pública (art. 129, inciso I), a Lei Fundamental, parece, quis estabelecer a imprescindibilidade de sua atuação para o processo e, consequentemente, evitar o embricamento das funções dos sujeitos processuais. Com efeito, no processo penal, deve haver as figuras do ‘acusador’ e do ‘julgador’; e elas devem ser bem delimitadas, separadas, de modo que um com o outro não se confunda. Pois bem.
A atual situação cênica dos móveis da sala de audiência, por estar o assento destinado ao órgão do MP imediatamente do lado do julgador, vai de encontro a essa necessária diferenciação. Com efeito, ‘visualmente’, isso transmite a um observador - que ignora os regramentos positivos e consuetudinários - a ‘impressão’ de, senão identidade, de proximidade das atribuições. Tal ‘ilação’ é, certamente, facilitada pela circunstância de o servidor auxiliar-escrevente do Magistrado sentar em posição equivalente (imediatamente do lado esquerdo), e os Advogados e Defensores Públicos (assistentes da acusação ao lado direito; defensores, ao lado esquerdo) não, ficando, além de mais afastados, perpendicularmente ao Juiz. Isso sem contar o fato de que, inexplicavelmente (melhor seria dizer indevidamente) que a poltrona destinada ao órgão do Parquet é, de praxe (inclusive, nesta Vara), muito mais “luxuosa” que a destinada aos Advogados e Defensores Públicos. “Nada justifica que assim seja. (...) Pelo exposto, ACOLHO o requerimento administrativo formulado pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul e DETERMINO a alteração do mobiliário da sala de audiências, de modo que seja removido o assento ora destinado ao órgão do Ministério Público, que deverá, quando comparecer às solenidades aprazadas pelo Juízo, tomar lugar nos remanescentes que se situam “à direita” (e não ao lado) do Julgador.Intimem-se o órgão do Ministério Público e da Defensoria Pública que atualmente têm atribuição para oficiar perante esta Vara Criminal - autorizado extração livres de cópias. Remetam-se cópias do pedido inicial e desta decisão: 1) ao Presidente do Tribunal de Justiça; 2) ao Corregedor-Geral de Justiça; 3) ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos do TJ; 4) ao Presidente da OAB/RS; 5) ao Diretor de Valorização Profissional da OAB/RS; 6) ao Presidente da AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul; e 7) ao Presidente da AMB - Associação dos Magistrados do Brasil, em Brasília. E encaminhe-se cópia integral do expediente para o Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Procedam-se às diligências necessárias à reorganização dos móveis, inclusive com ciência ao Estenotipista”.
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Mas o desequilíbrio de armas não se revela apenas na arquitetura e nos móveis da sala de audiência e do auditório de julgamento. Ele também é discriminatório pelo tratamento verbal dispensado a uma das partes. É oportuno lembrar o teor de alguns despachos: “Vista ao ilustre representante do Ministério Público”; “Vista à douta Procuradoria da Justiça”; “Defiro o bem fundamentado requerimento do parquet ”.
Essas e outras expressões equivalentes são utilizadas por alguns Juízes e Desembargadores e caracterizam o tratamento desigual entre as partes nos processos judiciais. Além da proximidade pessoal e de estarem sentados “ombro a ombro”, Magistrado e membro do Ministério Público, aparecem ostensivamente como atores principais da representação processual enquanto o defensor, com assento em plano físico inferior, é relegado à condição de mero coadjuvante. O que consola o advogado nesses momentos e nessa localização da arquitetura forense é estar, democraticamente, ao lado de testemunhas, de ofendidos e de acusados. E, também, compreender que a tradição forense em nosso país, desde o Império até os dias atuais, apesar do cenário de um Estado Democrático de Direito, continua, via de regra, desconsiderando o princípio constitucional da isonomia, que deve funcionar no processo.
Lamentavelmente, para muitos juízes que descumprem deveres institucionais de relacionamento, o advogado não é o procurador de inúmeros interesses privados. Eles não o respeitam como “indispensável à administração da justiça” e muito menos como representante de uma maior ou menor parcela de cidadãos que lhes confiam a defesa de seus direitos e interesses. Nesse ponto, ofendem a regra legal de que, em seu ministério privado, o advogado exerce função pública.
E o que pensar e dizer de muitos magistrados que afrontam a lei para, de maneira humilhante, mandar ao procurador o recado de que não pode recebê-lo, por esse ou aquele motivo? O pior, porém, é quando o servidor recita a ordem imperial: “O juiz não recebe advogado”.
É certo que muitos, inúmeros Juízes, Desembargadores e Ministros são elegantes na relação funcional com o advogado e todas as pessoas com as quais devem tratar. Nesse momento, vigora a Lei Orgânica da Magistratura Nacional com várias regras de urbanidade e respeito. Muitos colegas, especialmente os mais jovens, confessam, humilhados, que foram destratados por essa ou por aquela autoridade judiciária. E me perguntam o que devem fazer. Nada, eu lhes respondo. A não ser assumir no corpo e na alma a opressão do preconceito por conta da qual a nossa classe já está com o “couro curtido”.
“Incorporem o espírito dos que resistem em silêncio, mas não dobrem a espinha para receber a graça do cumprimento. O gesto poderá ser entendido por quem está próximo como parte de uma liturgia religiosa”.
Além de assumir uma resistência estilo Ghandy, o advogado deve impor a sua autoridade moral e a legitimidade de sua atuação no interesse social, nunca se esquecendo dos instrumentos legais de que dispõe para enfrentar todo tipo de grosseria, ilegalidade e abuso, por ação ou omissão, contra si ou seu cliente.
E, com o passar dos anos da militância, entre as figuras que permanecem na boa memória do causídico estão a dos magistrados afáveis, fiéis aos seus deveres e cumpridores de sua missão. Quanto aos outros, o tempo se encarrega de fazê-los desaparecer.
A lápide de seus túmulos ou a legenda das urnas com suas cinzas deveria ter esta última sentença:
“O homem, esse cadáver adiado que todos nós somos”. (Fernando Pessoa, 1888-1935).
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[1] Como se verá no curso do presente artigo, o princípio do equilíbrio de armas no processo penal deve também valer para as audiências na Justiça estadual. A cadeira onde senta o membro do Ministério Público não pode estar em plano mais elevado que a cadeira reservada ao defensor. Para o réu ou a testemunha que participa do ato, a visão da figura silenciosa do Promotor de Justiça “ombro a ombro”, do lado Magistrado, traduz uma dúvida fundada para o leigo: Ele é auxiliar do Juiz ou é um outro juiz para o caso?
[2] STF, Rcl 12011 MC, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA. A OAB, a Defensoria Pública da União, a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais – ANADEF e a Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP ingressaram nos autos na condição de Terceiro Interessado ou como Amicus Curiae. O pedido liminar foi indeferido em 05/03/2012 (DJe 12/03/2012). O Parecer da Procuradoria Geral da República, de 20.03.2014, é pelo não provimento da reclamação. A causa aguarda julgamento desde então. No Conselho Nacional de Justiça, houve discussão similar por iniciativa do MPDFT (Procedimento de Controle Administrativo nº 0001023-25.2011.2.00.0000). A liminar foi deferida para acolher o pedido ministerial de reorganização das cadeiras em salas de audiência do Distrito Federal, conforme o modelo tradicional. Em 11.10.2013, proferiu-se decisão monocrática extinguindo o PCA, por perda de objeto, ao fundamento de que a palavra final quanto ao tema deveria ser dada pelo Supremo na Rcl 12011. (Pesquisa atualizada feita pelo Advogado Luís Otávio Sales, em 23.02.2016).
[3]LAURIA TUCCI, Rogério. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Constituição de 1988 e processo: regramentos e garantias constitucionais do processo, São Paulo: Editora Saraiva, 1989, p. 37. (Os destaques em itálico são do original).
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