1.“Vale a pena ler Beccaria hoje? ”
A interrogação é respondida por JOSÉ DE FARIA COSTA, o grande mestre português que traduziu o opúsculo Dei delitti e delle pene para a língua de Camões [1]: “Na verdade, a força interrogante, a limpidez na colocação dos problemas e a mestria das soluções propostas torna-o – como de forma particularmente aguda, conhecedora e clarividente faz o Prof. GIORGIO MARINUCCI no seu belíssimo ensaio que a seguir se publica (...) ‘um nosso contemporâneo’. As obras clássicas – justamente porque o são – não só se impõem nas gerações futuras, mas também – e de maneira impressiva – exercem um fascínio sobre os homens que, ao longo dos tempos, as leem e releem. (...) Efectivamente, como não deixar de nos espantar quando, rompendo com tudo, se advoga a doçura das penas? Como não sentir um clarão de luz gélida quando se questiona o próprio direito de propriedade? Como não nos deliciarmos perante a harmonia da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a gravidade da moldura penal abstracta? Como não sermos tocados pelo inteligentíssimo aproveitamento da ideia difusa e popular de que mais vale prevenir do que remediar? Eis, em termos de paupérrima fulguração descritiva, alguns tímidos exemplos da riqueza interrogante do texto de Beccaria” [2].
2.O tempo e as ideias do Iluminismo
CESAR BONECADA nasceu em Milão (1738) e foi educado em Paris pelos jesuítas, tendo se dedicado ao estudo da Literatura e da Matemática. O Marquês de BECCARIA, título pelo qual seria destacado na História, recebeu a influência de filósofos como Charles -Louis Secondat, o Barão de MONTESQUIEU (1689 - 1755), autor de O espírito das leis e Cartas Persas, e de Claude Adrien HELVETIUS (1715-1771), que escreveu De l’Esprit, chegou a fazer parte da redação de um jornal (Il Caffè), que funcionou de 1764 a 1765. Preocupado com as violências físicas e morais praticadas em nome da justiça criminal, porém temeroso pela divulgação de suas ideias libertárias, BECCARIA imprimiu o seu livro secretamente, na cidade de Livorno. A publicação ocorreu em Milão (1764), quando o autor tinha 26 anos de idade.
A grande e revolucionária mudança operada nas ciências humanas e sociais, nas artes e na literatura do século das luzes iria revelar um expressivo número de gênios em diversas especialidades do pensamento e da ação. Além de filósofos, os setecentos dariam também ao mundo notáveis músicos, poetas, políticos e líderes políticos. George Frideric HAENDEL (1685-1759); Luigi CHERUBINI (1760-1842); Nicolo PAGANINI (1782-1840); Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827); Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791); Jean-Jacques ROUSSEAU (1712-1778); François Marie Arouet VOLTAIRE (1694-1778); João Baptista da Silva Leitão de ALMEIDA GARRET (1799-1854); Johann Sebastian BACH (1685-1750); Simón BOLÍVAR (1783-1830); Jean-François CHAMPOLLION (1790-1832); Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marques de CONDORCET (1743-1794); George Jacques DANTON (1759-1794); Johann Wolfgang von GOETHE (1749-1832); Antoine LAVOISIER (1743-1794); Sir Isaac NEWTON (1643-1727); Arthur SCHOPENHAUER (1788-1860). Esses nomes e um imenso número de outros com o mesmo destaque em seu tempo e na memória dos pósteros, produziram obras inesquecíveis assinaladas em biografias que a passagem dos séculos não esmaeceu.
3.Um brado universal de resistência contra a opressão
Embora Dei delitti e dellle pene seja uma denúncia sobre as mazelas dos sistemas legais e judiciários e um breviário de esperança para leitores de todas as idades, é durante o tempo da juventude que não raramente despontam os mais vigorosos ideais e se abrem caminhos que serão alimentados e seguidos pela virtude do entusiasmo.
A imortal obra constituiu uma síntese na Filosofia francesa aplicada ao Direito e ao Processo Penal. O pequeno grande livro, como disse FAUSTIN HÉLIE, foi um primeiro grande brado de revolta contra as iniquidades do Direito e do Processo Penal da Itália dos setecentos. Os práticos da Idade Média, entre eles, JULIUS CLARUS, FARINACIUS e CAPZOV haviam elaborado uma doutrina radical em matéria de castigos que se notabilizou com o advento da Constituição Carolina (1532), sob o governo de Carlos V.
Entre as várias acepções que os dicionários registram para a palavra clássico, duas delas se aplicam inteiramente ao livro Os delitos e as penas: (a) é da mais alta qualidade (modelar, exemplar); (b) o seu valor foi posto à prova dos tempos.
JOÃO RIBEIRO (1860-1934), o notável poeta, jornalista e escritor sergipano, disse, em suas Páginas de Estética: “É mister não só ler, mas viver, conviver, respirar e conspirar com os clássicos, no mundo em que se moveram e comoveram”. LÚCIO CARDOSO (1913-1968), o escritor mineiro (Prêmio Machado de Assis), a respeito da sobrevivência de uma obra, observou: “Se num clássico descobrimos o que há de moderno, não será isto o sinal mais certo de sua validade? ” (Diário Completo).
4.A atualidade do discurso garantista
BECCARIA desenvolveu as mais variadas frentes de crítica às violências físicas, morais e espirituais do sistema criminal daquele tempo, como, por exemplo: (a) denunciando o uso da lei em favor de minorias autoritárias; (b) deplorando a falta de proporcionalidade entre os delitos e as penas; (c) sustentando a necessidade de clareza das leis e rejeitando o pretexto adotado por muitos magistrados de que era preciso “consultar o espírito da lei”, mas para aplicá-la de forma injusta; (d) analisando as origens das penas e do direito de punir, advertindo que a moral política não pode proporcionar nenhuma vantagem durável se não estiver baseada “sobre sentimentos indeléveis do coração do homem”; (e) advogando a moderação das penas e opondo-se vigorosamente à pena de morte e as demais formas de sanções cruéis; (f) condenando a tortura como meio para obter confissões e sustentando a necessidade da lei estabelecer, com precisão, quais seriam os indícios que poderiam justificar a prisão de uma pessoa acusada de um delito; (g) reprovando o costume de se pôr a cabeça a prêmio, isto é, de oferecer recompensa para a captura do criminoso; (h) reivindicando a necessidade de uma classificação de delitos e a descriminalização de vários deles.
5.O chamado “direito penal do inimigo”
BECCARIA restaura, em toda a sua dimensão tragicamente humana, o preconceito e a intolerância com a figura do condenado ou simples acusado e mostra, com a realidade de sua época, os contornos bem definidos de uma classificação discutida pelos escritores do presente: o direito penal do inimigo. Nesse sentido é a opinião de GÜNTHER JAKOBS, que, contrariando o princípio da igualdade de todos perante a lei criminal, sustenta a necessidade de um direito penal do cidadão aplicável a todos os que pertencem a uma “comunidade legal”, excluindo-se aqueles que se recusam a participar nela, tentando obter a aniquilação dessa comunidade (os terroristas) ou violando repetida e persistentemente as normas que os regem (criminoso habitual ou por tendência). Em suas palavras: “o direito penal do cidadão é o direito de todos, o direito penal do inimigo é o daqueles que se unem contra o inimigo; face ao inimigo há apenas a coação física, até chegar à guerra” [3].
O chamado direito penal do inimigo é uma das malsinadas concepções do autoritarismo e traduz a ressurreição de antigas práticas sob nova roupagem ideológica e novas formas de escuridão do espírito.
Esta concepção “é de todo inadmissível, logo por poder descambar em um ‘direito penal do agente’, como lucidamente observa FIGUEIREDO DIAS lembrando “as formas mais agressivas que assumiu no Estado nacional-socialista alemão, mas, sobretudo e em definitivo, por contrária ao fundamento primário do Estado de direito e à concepção da pessoa que lhe dá fundamento” [4].
6.A impressionante atualidade da obra
A maioria, senão todas as manifestações de protesto do livro perene encontram ressonância nos dias correntes. No interior dos cárceres – esses “monumentos talhados em pedra”, como já disse alguém – na súplica perante os juízes e tribunais, no repertório das Declarações de Direitos, nas doutrinas expostas em tratados e manuais e no universo tangível dos sistemas penais e processuais circulam o pensamento e as palavras de Beccaria revividas com o passar dos séculos.
Em meu Curso de Direito Penal [5], afirmei que as múltiplas influências de sua generosa obra fizeram de BECCARIA um guia permanente para os estudiosos e profissionais do Direito e do Processo Penal até os dias correntes, passados dois séculos de sua primeira edição. Já naquele tempo, na Rússia de Catarina II, em uma célebre Instrução, proposta em 1765 (um ano após o livro), pode-se ler o seguinte: “A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte jamais tornou uma nação melhor” . Segue-se uma frase de Bobbio, que parece extraída do texto de Beccaria: “Portanto, se demonstra que, no estado ordinário da sociedade, a morte de um cidadão não é útil nem necessária, terei feito vencer a causa da humanidade”[6]. Uma lei da Toscana, promulgada em 1786, aboliu a pena capital (§ 51), declarando que o réu é também filho da sociedade e do Estado e que se decidia “abolir para sempre a pena de morte contra qualquer réu, seja primário ou contumaz, e ainda que confesso e convicto de qualquer delito declarado capital pelas leis até aqui promulgadas, todas as quais ficam revogadas e abolidas no que a isso se refere” [7].
É evidente que, na história da humanidade, não apenas os juristas e os profissionais do Direito e da Justiça, mas, também, filósofos, políticos, religiosos e outras categorias de pensadores lutaram contra os horrores provocados pela pena de morte. Vale a lição da História, de que foi através das fantasmagorias da execução e da inutilidade das penas corporais (mutilação, morte, etc.) que o pensamento jurídico reformador concebeu a perda da liberdade como fórmula de exploração do braço presidiário para muitos trabalhos. O humanista e estadista inglês, TOMAS MORE (1478-1535) foi defensor, em sua Utopia, da concepção que mais tarde seria francamente dominante e estranhava porque, em lugar de se aplicar a pena de morte contra os ladrões, não se lhes obrigava a trabalhar nas minas.
Em magnífico texto, o Ministro EVANDRO LINS E SILVA ANALISAR analisa uma das obras pioneiras contra a pena capital, escrita entre 1585 e 1586 por ARGISTO GIUFFREDI, poeta e filólogo, nascido em Palermo, no ano de 1535: Avvertimenti Cristiani. O livrinho de Giuffredi somente foi editado em 1896, credenciando o seu autor junto aos pósteros como um resistente contra as penas desumanas. O artigo do pranteado criminalista do século 20 tem um título sugestivo: “Um precursor de Beccaria?” [8].
E, voltando ao autor de Dos delitos e das penas, LINS E SILVA salienta a atualidade de suas denúncias, que é “consagradora quando se estuda, na ciência penal de nossos dias, o movimento que se avoluma no sentido da abolição das próprias prisões, com o encontro de substitutivos ou alternativas para manifestar a reprovação da sociedade contra o crime” [9].
Como acentua FARIA COSTA, na referida tradução desse clássico, “esta pequena obra – e não está o pensamento ocidental cheio de pequenas grandes obras? – Pode ser vista como o Manifesto do garantismo, ou seja: como manifesto das garantias, em direito e processo penais, do cidadão nas suas relações com o Estado detentor do ius puniendi” [10]. GIORGIO MARINUCCI, em vibrante introdução ao mencionado trabalho, diz com inteira razão: “As obras necessárias escolhem por si mesmas a sua própria época; as obras perenemente necessárias, como os Delitti, vivem e vivificam em todas as épocas e em todos os lugares”.
7.Relação de afinidade entre cenários de opressão
Nada mais verdadeiro se fizermos um confronto das denúncias de BECCARIA frente aos vícios e às injustiças do sistema criminal de nosso país. Como referência imediata, pode-se fazer alusão ao Movimento Antiterror [12] e à sua Carta [13] na qual se destacam muitas ilegalidades e injustiças que são expostas por BECCARIA. Uma delas é a tortura. A Constituição Federal de 1988 declara, num de seus primeiros artigos, que a sua prática caracteriza crime inafiançável negando aos seus agentes os benefícios da graça e anistia que, na história dos costumes políticos e jurídicos, são indulgências soberanas para atender determinadas circunstâncias sociais ou as condições pessoais do autor do fato. Sob outra perspectiva, a nova Carta Política dos brasileiros resguarda, como nenhuma outra o fizera, a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político.
8.Um manual em favor da dignidade da pessoa humana
O rigor contra a tortura e seus agentes, o reconhecimento dos valores do homem, as garantias dos direitos civis e a liberdade partidária são conquistas da Nação e do Estado Democrático de Direito obtidas após anos de sofrimento e de resistência contra a ilegalidade, o arbítrio, a intolerância e a violência que se constituíram nos pontos cardeais de uma viagem dirigida pelos timoneiros da ditadura militar. Mas, na verdade, tanto a tortura como os demais atentados ao corpo e ao espírito dos seres humanos são expressões de violência e de domínio inerentes à dramática condição humana e que de tempos em tempos retomam o seu lugar a serviço de governantes e de grupos para o exercício e o usufruto do poder.
As sequelas das torturas constituem uma grave advertência para as gerações do presente e do futuro: o terror oficial é o pior dos crimes contra a humanidade. Ele é praticado em nome de um Estado que aprisiona a sociedade e transforma os cidadãos em servidores de passagem para o triunfo dos tiranos que fazem da tortura a sua ferramenta de trabalho e do sangue de suas vítimas a cor do tapete que os áulicos colocam sob os seus pés para evitar o contato com a terra.
Um dos temas sedutores do escrito de BECCARIA (a obscuridade das leis) pode servir de arremate para este prefácio e como saudação à generosa edição que em muito boa hora chega às livrarias. Diz ele que: “Quanto maggiore sarà il numero di quelli che intenderanno e avrano fralle mani il sacro códice delle leggi, tanto men frequenti saranno i delitti i delitti, perché non v’há dubbio Che l’ignoranza e l’incertezza delle pene aiutano l’eloquenza delle passioni” (§ V). “Quanto maior for o número daqueles que poderão entender e ter entre as suas mãos o sagrado código das leis, tanto menos frequentes serão os delitos, pois não há dúvida de que a ignorância e a incerteza das penas servem a eloquência das paixões”.
Parafraseando essa imorredoura máxima, pode-se afirmar que, quanto maior for o número dos especialistas do sistema criminal, dos trabalhadores forenses e, em especial, dos acadêmicos de Direito que conhecerem a letra e o espírito dos delitos e das penas, menos frequentes serão as ilegalidades e os abusos de autoridade, pois não há dúvida que a ignorância e a incerteza sobre a dignidade e os direitos da pessoa humana conduzem às violências institucionais e ao erro judiciário.
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[1] Edição original de Harlem, Livorno, 1766, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998.
[2] Dos delitos e das penas, cit., p. 27-27.
[3] Derecho penal del ciudadano y derecho penal del inimigo, em Jakobs/Cancio Meliá, Derecho penal del inimigo, 2003, p. 19 e s.
[4] Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal- Parte Geral, Coimbra Editora, 2004, tomo I, p. 34/35. (O destaque em itálico é do original).
[5] Parte Geral, São Paulo: 5ª ed., rev. e atual. com a colaboração de Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari, São Paulo: Thomson Reuters/Revista dos Tribunais, 2013, p. 235.
[6] Norberto BOBBIO, A era dos direitos, trad. de Carlos Nelson Coutinho, RJ: Campus Ltda, 1996, p. 164.
[7] Cf. BOBBIO, em ob. e loc. cit.
[8] Em Arca de Guardados, RJ; Editora Civilização Brasileira, 1995, p. 246/247.
[9] “De Beccaria a Filippo Gramática”, em Ciência e Política Criminal em honra de Heleno Fragoso, organização de João Marcello de Araújo Junior, RJ: Forense, 1992, p. 6.
[10] José de FARIA COSTA, “Ler Beccaria hoje”, ensaio introdutório à tradução portuguesa Dos delitos e das penas, cit. p., 8.
[11] “Cesare Beccaria, um nosso contemporâneo”, em Dos delitos e das penas, cit., p. 53.
[12] O Movimento Antiterror teve seu marco inicial em Salvador (BA), por ocasião do congresso Últimas teses das ciências criminais, promovido pelo Instituto de Estudos Luiz Flávio Gomes e pelo Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia, realizado nos dias 11 e 12 de abril de 2003, com vigorosas críticas ao projeto de lei que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (Lei nº 12.433). Sobre a história do Movimento, vide DOTTI, René Ariel: Movimento antiterror e a missão da magistratura, 2ª ed., Curitiba: Juruá Editora, 2005.
[13] A Carta de Princípios do Movimento antiterror, foi divulgada em 20 de maio de 2003, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O texto completo, por mim redigido, se contém na obra acima referida, fls. 29-50.
*René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova Parte Geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Ministério da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário da Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991). Escreve quizenalmente para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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