• Carregando...

Dando seguimento à série de artigos que tratam da discussão em torno da possibilidade do Ministério Público recorrer de decisões de absolvição proferidas em primeiro grau (veja os dois outros artigos aqui e aqui), vejamos agora como é legítima essa possibilidade também a partir da leitura da Constituição da República brasileira e da Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de “Pacto de San José da Costa Rica”).

De início vale recordar o que se pontuou no segundo artigo desta série: vedar a possibilidade de o Ministério Público interpor recurso da decisão que absolveu o acusado, ao argumento de que o processo penal seria – tão somente – instrumento de proteção do acusado frente ao Estado, é ignorar toda a dupla função do processo penal e das mecânicas de proteção dos direitos fundamentais, operacionalizadas no sentido de atuar como proibição de excesso do Estado e, simultaneamente, de não admitir proteção insuficiente da vítima por parte do mesmo Estado.

A tese que pretende impedir o Ministério Público de recorrer de decisões de absolvição em primeiro grau (a qual, para facilitar, chamarei a partir de agora de “tese proibicionista”) também sustenta, retoricamente, que não existiria na Constituição da República um direito à “ampla acusação”. Essa análise procura usar de eufemismo excludente do princípio constitucional da ampla defesa em relação ao Ministério Público, desconsiderando que ele também é composto constitucionalmente em dupla vertente. É preciso ler a Constituição em toda sua dimensão e, para tanto, se transcreve, aqui, o inciso LV, do art. 5º, da Constituição da República:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Como se vê, o texto constitucional diz: aos “litigantes” e aos “acusados” são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Há neste dispositivo constitucional uma clara dupla chave dos princípios da ampla defesa e do contraditório. A tese proibicionista se limita a ler o referido texto apenas na segunda vertente (em relação “aos acusados”), esquecendo-se de que os princípios são assegurados também “aos litigantes” em processo judicial. Ou seja, os princípios operam em relação a ambas as partes, notadamente quando lidos em relação aos “litigantes” [1].

Neste ponto, ainda que hoje se saiba que a “lide” não pode mais ser lida como a razão de ser da jurisdição no processo penal, fundante de uma Teoria Geral Unitária do Processo, como o próprio Carnelutti [2] redirecionou sua compreensão após as críticas que recebeu, não é demais dizer que o constituinte brasileiro de 1988 não chegou ao preciosismo de diferenciar a “lide civil” da “lide penal” no texto da Constituição, até porque essa discussão ainda não havia chegado com força ao Brasil e o constituinte não tinha sequer acesso à proposta de denominar o conteúdo do processo como sendo o “caso penal”, para emprestar a importante contribuição construída por Jacinto Coutinho em sua tese defendida na Itália e publicada no Brasil em 1989 [3]. O constituinte, portanto, no artigo 5º, tratou, genericamente, dos “litigantes”, como quem alude às partes de um processo administrativo ou judicial [4]. Assim, nessa primeira vertente, o princípio da ampla defesa se assume como ampla defesa da tese da parte no correspondente processo. E só na segunda vertente é que a ampla defesa se analisa pelo duplo sentido de se garantir autodefesa e defesa técnica. A ampla defesa, portanto, na primeira vertente do princípio constitucional, somado ao complemento dado no texto constitucional pelos “recursos a ela inerentes”, dá ampla margem de garantia a quem defende as vítimas e a sociedade – o Ministério Público [5] – de recorrer contra a decisão absolutória.

E até aqui, perceba-se, que nem foi preciso ingressar na análise da dupla face do papel do Ministério Público no processo penal: como parte e como fiscal da lei...

Também não foi necessário discutir a questão a partir do sistema acusatório que se pretende como um processo de partes – no plural – orientado pela paridade de armas e pelo controle amplo daquele que exercita a jurisdição.

E igualmente nem foi preciso ingressar na análise das regras infraconstitucionais que, como já destacado, dizem expressamente da possibilidade recursal do Ministério Público (v.g. art. 577 do C.P.P.).

Enfim, no próprio princípio da ampla defesa está inserida a norma permissiva.

Não bastasse, o argumento usado pela tese proibicionista também se afasta da noção básica da teoria geral dos recursos assentada na ideia da falibilidade humana e na tendência ao abuso por parte de quem detém poder.

Com efeito, o juiz de primeiro grau pode se equivocar ao prolatar o édito absolutório. Pior, pode querer abusar por capricho, amizade, relações políticas ou até mesmo ser corrompido. Dada a natureza humana não há como desconsiderar essas possibilidades. Neste contexto, proibir que o Ministério Público, ou mesmo o querelante, ou a vítima, subsidiariamente, possam se utilizar do duplo grau de jurisdição, para questionar tal desfecho no âmbito de um juízo colegiado não reflete a melhor interpretação do texto constitucional e afronta o alicerce da teoria geral dos recursos.

Não se pode olvidar que exercer poder exige controle. Se mesmo com a possibilidade recursal por parte do Ministério Público, hoje amplamente aceita, é possível encontrar decisões de absolvição altamente questionáveis num corpo de magistrados ainda em grande parte influenciado e formado sob o paradigma da Filosofia da Consciência (portanto, moldados pela máxima positivista normativista do “decido conforme a minha consciência”), caso essa tese proibicionista venha a vingar, o cenário poderá ser perigoso até mesmo para a consolidação da democracia, pois ampliará a desconfiança que vem sendo há anos, crônica e fortemente, externada pela população em relação ao Poder Judiciário. Ademais, se o juiz souber que no exercício de seu poder jurisdicional ninguém poderá questioná-lo quando sua decisão for absolutória, não será de se admirar se o abuso deste poder acabar se ampliando e se impondo definitivamente em termos discricionários no julgamento. É da natureza humana uma tendência ao arbítrio, ao abuso, notadamente quando ausentes mecanismos de controle. Aliás, esta é uma das razões pelas quais o recurso foi pensado, desde a criação do Conselho dos 25 Barões ingleses com poder revisional das decisões do Rei, na famosa Magna Charta Libertatum, em 1215, na Inglaterra.

Somam-se, portanto, os fatores legitimadores da própria existência do recurso: diminuir discricionariedade; minimizar abusos; corrigir erros de interpretação; e minimizar a possibilidade de corrupção. Aliás, quanto a este último aspecto, é demais preocupante a prevalência da tese que possa vedar recursos contra sentenças de absolvição num país como o Brasil, de evidente formação estamental, como refere Raymundo Faoro [6], somado a uma moral cronicamente esgarçada, com ampla margem corruptiva nos setores públicos e privados, e que historicamente privilegia mecanismos de proteção mútua aos detentores do poder. Os mais favorecidos neste plano serão novamente os detentores do capital e do poderio político. A corrupção no Poder Judiciário, como, aliás, em qualquer órgão, instituição ou setor público ou privado, não pode ser desconsiderada. Aliás, esta preocupação com a probabilidade de corrupção dos magistrados já estava presente entre os norte-americanos desde, pelo menos, o texto de Alexander Hamilton publicado em 1788 e depois compilado na famosa obra “O Federalista”, quando, mesmo não sendo um grande defensor do julgamento pelo Júri, admitiu que:

“As vantagens do julgamento pelo júri, em causas cíveis, fundam-se em circunstâncias estranhas à causa da liberdade. A maior de todas consiste nos obstáculos que daqui resultam contra a corrupção. Como sempre há mais tempo e ocasiões favoráveis para ganhar um corpo permanente de juízes do que um júri convocado extemporaneamente, supõe-se que os meios de corrupção podem mais facilmente influir no primeiro do que no último (...)

...forçoso é confessar que o julgamento pelos jurados deve ser sempre um grande obstáculo à corrupção. No estado em que as coisas se acham atualmente, seria preciso corromper o júri e os juízes; porque, no caso em que o júri tiver evidentemente mal julgado, deve conceder o tribunal um novo juízo; a não estar corrompido, do mesmo modo que o júri. Daqui resulta dobrada força de segurança e essa ação complicada tende a conservar a pureza das duas instituições, tirando, por meio de novos obstáculos, a esperança de resultado àqueles que pretenderem corromper os jurados ou os juízes. E até esses mesmos não serão tão fáceis de corromper quando souberem que não podem consumar a sua iniquidade sem participação de um júri, como quando a decisão depender deles somente.” [7]

Enfim, quanto menos controle houver no exercício do poder jurisdicional, mais se premiará a possibilidade da corrupção se ampliar no Poder Judiciário. Daí também se revela a importância de se manter a possibilidade de recurso das decisões absolutórias monocráticas, direcionado a um órgão julgador colegiado, como autoriza a adequada leitura da Constituição brasileira.

Partindo do quanto consideramos em relação à Constituição da República brasileira, a Convenção Americana de Direitos Humanos igualmente merece ser lida em sua dupla dimensão, de proibição de excesso e de proibição de proteção insuficiente.

Tanto é assim que a referida Convenção prevê, expressamente, o direito à “proteção judicial” em seu art. 25, dizendo que “toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção”. E, no mesmo artigo 25, ainda se obrigam os Estados signatários da Convenção, a se comprometerem a “desenvolver as possibilidades de recurso judicial” (art. 25, 2. b). Como explicam Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli, a palavra “recurso” aqui, se entende tanto em relação à possibilidade recursal “em seu sentido estrito (contra uma decisão já proferida)”, quanto “também em seu sentido mais amplo de meio ou instrumento jurídico adequado à defesa de um direito” [8]. E, como se sabe, nos termos dos artigos 127 [9] e 129 [10], I , da Constituição da República, quem protege judicialmente a vítima e a sociedade brasileira, pela via do processo penal, inclusive mediante recurso, é o Ministério Público.

Não à toa, portanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos construiu uma jurisprudência ao julgar reiterados casos nos quais reconhece que a inoperância estatal do Ministério Público no âmbito processual penal, que possa vir em prejuízo da vítima de crime, é objeto de valoração e censura à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos. Nos termos das decisões da Corte, o Estado-Ministério Público omisso é condenado a atuar positivamente em favor de vítimas de crimes. Aliás, a Corte Interamericana de Direitos Humanos chegou a construir a doutrina da “obrigação de investigar” como materialização do dever de garantia de proteção judicial. Sobre o tema, vale referir ao quanto ilustrado por Juana María Ibañez Rivas a respeito do artigo 25 da Convenção, ao analisar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do Caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras (Sentença de 26 de novembro de 2008):

“O cumprimento da obrigação de investigar as violações dos direitos humanos é uma ‘das medidas positivas que devem adotar os Estados para garantir os direitos reconhecidos na Convenção’. Dita obrigação estatal não se encontra expressamente estabelecida na Convenção Americana. Mesmo assim, desde a primeira sentença de fundo do Tribunal no Caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras, a Corte assinalou que como consequência da obrigação de garantir, contida no artigo 1.1. da Convenção, ‘os Estados devem prevenir, investigar e sancionar toda violação dos direitos reconhecidos por (dito tratado) e procurar, ademais, o restabelecimento, se é possível, do direito violado e, neste caso, a reparação dos danos produzidos pela violação dos direitos humanos. Portanto, a obrigação de investigar os fatos que constituem violações de direitos humanos faz parte das obrigações derivadas do dever de garantia dos direitos consagrados na Convenção.” [11]

Entendimento similar foi adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso García Prieto y outro vs. El Salvador (Sentença de 20 de novembro de 2007), como comenta Ibañez Rivas:

“Ademais, conforme precisou a Corte, dita obrigação “não somente se depreende das normas convencionais de Direito Internacional imperativas para os Estados-Parte, mas também deriva da legislação interna (dos Estados) que faz referência ao dever de investigar de ofício certas condutas ilícitas e às normas que permitem que as vítimas ou seus familiares denunciem ou apresentem queixas, provas ou petições ou qualquer outra diligência, com a finalidade de participar processualmente na investigação penal com a pretensão de estabelecer a verdade dos fatos.” [12]

E, retomando o Caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras, bem como referindo ao Caso Bulacio vs. Argentina, prossegue dizendo:

“Desta maneira, “(s)e o aparato de Estado atua de modo que (uma) violação fique impune e não se restabeleça, enquanto seja possível, a vítima na plenitude de seus direitos”, ou se “tolere que os particulares ou grupos deles atuem livre ou impunemente em menoscabo dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção”, pode afirmar-se que descumpriu o dever de garantir o livre e pleno exercício às pessoas sujeitas à sua jurisdição. Assim, já que dita obrigação está diretamente vinculada ao direito de acesso à justiça, esta “deve assegurar, em tempo razoável, o direito das presumidas vítimas ou seus familiares, que se faça tudo o que for necessário para conhecer a verdade do que ocorreu e investigar, julgar e, neste caso, sancionar os eventuais responsáveis.” [13]

Ademais, como destaca a autora, no Caso Nadege Dorzema y otros vs. República Dominicana e no Caso Castillo González y otros vs. Venezuela, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu que as vítimas devem contar com amplas possibilidades de atuação nos processos criminais, com a Convenção Americana de Direitos Humanos impondo o dever para o Estado de garantir a participação da vítima em todas as etapas do processo:

“ As vítimas das violações de direitos humanos, ou seus familiares, “devem contar com amplas possibilidades de serem ouvidas e atuar nos respectivos processos, tanto na procura de esclarecimento dos fatos e do castigo dos responsáveis, quanto em busca de uma devida reparação”. Para tanto, “os Estados têm a obrigação de garantir o direito das vítimas ou seus familiares de participar de todas as etapas dos respectivos processos de maneira que possam fazer abordagens, receber informações, aportar provas, formular alegações e, em síntese, fazer valer seus direitos”. [14]

Repita-se o texto do julgado da Corte Interamericana: “os Estados têm a obrigação de garantir o direito das vítimas e seus familiares de participar de todas as etapas dos respectivos processos...”. Aliás, não é demais recordar que a esse respeito até mesmo o Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Garibaldi vs. Brasil (Sentença de 23 de setembro de 2009), justamente por violar a regra do artigo 25, 2, b, da Convenção e não atuar com eficiência na repressão aos delitos que violavam direitos das vítimas. O caso envolvia a omissão do Estado brasileiro em relação à morte de Sétimo Garibaldi que era um trabalhador rural, integrante do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, morto no Município de Querência do Norte, no Estado do Paraná, por ocasião da desocupação de área privada. O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela inoperância na investigação e pela não responsabilização criminal dos autores do homicídio, com o dever de reabrir a investigação e de indenizar os familiares da vítima em U$70.000,00 (setenta mil dólares). Consta da decisão da Corte sua forma de interpretar a inércia estatal em relação à proteção de vítimas de crime e sua preocupação com a impunidade:

 “A Corte não pode deixar de expressar sua preocupação pelas graves falhas e demoras no inquérito do presente caso, que afetaram vítimas que pertencem a um grupo considerado vulnerável. Como já foi manifestado reiteradamente por este tribunal, a impunidade propicia a repetição crônica das violações de direitos humanos.” [15]

(...)

A Comissão entendeu que, enquanto não seja realizada uma investigação imparcial e efetiva dos fatos, existe uma violação do direito de acesso à justiça. Agregou que, conforme a jurisprudência da Corte, uma reparação integral exige que o Estado investigue com a devida diligência os fatos, com o fim de julgar e sancionar os responsáveis pela morte do senhor Garibaldi. As vítimas deverão ter pleno acesso e capacidade de atuar em todas as etapas e instâncias dessas investigações, nos termos da lei interna e da Convenção, e o Estado deverá assegurar o cumprimento efetivo das decisões que adotem os tribunais internos. Reconheceu os esforços estatais para o desarquivamento do Inquérito Policial e entendeu, nesse sentido, que é fundamental que o Estado cumpra seu dever de evitar e combater a impunidade através da realização de uma investigação séria, exaustiva, imparcial e efetiva da morte de Sétimo Garibaldi. [16]

(...)

A Corte valora positivamente o desarquivamento do Inquérito. Todavia, considera que, embora tal medida resulte em um avanço inicial importante, a reabertura do procedimento investigativo deverá ser seguida pela realização efetiva das diligências necessárias para a elucidação dos fatos e o estabelecimento das responsabilidades correspondentes, conforme exposto nesta Sentença (supra pars. 122 a 127). [17]

(...)

Considerando o anterior, assim como a jurisprudência deste Tribunal, a Corte dispõe que o Estado deve conduzir eficazmente e dentro de um prazo razoável o Inquérito e qualquer processo que chegar a abrir, como consequência deste, para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor Garibaldi. Do mesmo modo, o Estado deve investigar e, se for o caso, sancionar as eventuais faltas funcionais nas quais poderiam ter incorrido os funcionários públicos a cargo do Inquérito. Adicionalmente, tal e como têm sido indicado pela Corte, as vítimas ou seus representantes deverão ter acesso e capacidade de atuar em todas as etapas e instâncias dos processos internos instaurados no presente caso, de acordo com a lei interna e a Convenção Americana. [18]

Como se viu dos trechos acima destacados, a posição da Corte Interamericana é muito clara ao deixar registrada a necessidade de persecução criminal e de participação das vítimas “em todas as etapas e instâncias dos processos internos instaurados no presente caso”.

Noutro giro, os defensores da tese proibicionista seguem argumentando que a redação do art. 8º, 2, letra “h”, da Convenção Americana de Direitos Humanos refere apenas ao direito do acusado interpor recurso e não fala nada do Ministério Público. Ora, isso não implica dizer que o Ministério Público não possa igualmente recorrer da sentença absolutória. De fato, se a regra da Convenção Americana de Direitos Humanos não traz – expressamente prevista – a possibilidade recursal do Ministério Público, isso decorre do fato de que não há necessidade de se regrar, num Pacto de Direitos do Cidadão, quais são os direitos processuais penais do Estado-Ministério Público. Isso é tão evidente que caso prevaleça a leitura pretendida pela tese proibicionista, de se considerar o direito ao recurso como inerente apenas à defesa porque a Convenção não fala da possibilidade recursal do Ministério Público, tudo o mais que dela constar, no âmbito processual penal, fazendo alusão apenas ao direito de defesa, implicará, contrario sensu, admitir que os correspondentes direitos processuais do Ministério Público não possam mais prevalecer. Nessa linha torta de raciocínio, teríamos que reconhecer que o Ministério Público não poderia, por exemplo, sequer arrolar testemunhas ou lhes formular perguntas, já que, no texto da Convenção Americana de Direitos Humanos, há referência apenas à possibilidade da defesa arrolar e inquirir as testemunhas (art. 8º, 2, f). A falta de lógica dessa compreensão, portanto, é patente.

De resto, a Convenção Americana de Direitos Humanos ainda expressamente assinala que “o acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.”. Repita-se: “absolvido por sentença transitada em julgado”. Ora, como se sabe, “trânsito em julgado” pressupõe o esgotamento dos recursos admissíveis em lei. A regra está direcionada a proibir a ação de Revisão Criminal contra quem foi absolvido após o esgotamento dos recursos. E isso é assegurado pelo direito brasileiro (art. 621 do C.P.P.). Não significa, portanto, como pretende a tese proibicionista, dizer que o Ministério Público não possa recorrer da decisão de absolvição. Enquanto não se esgotarem as possibilidades recursais para o Ministério Público, a absolvição não transita em julgado. Assim, essa regra espelha apenas a possibilidade de interposição de exceção de coisa julgada em favor do acusado absolvido, depois do trânsito em julgado e levando em conta o regramento recursal interno de cada país. No caso do Brasil, como se sabe, o Código de Processo Penal autoriza a possibilidade recursal do Ministério Público (v.g. art. 577 do C.P.P.: “o recurso poderá ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou seu defensor”).

Portanto, não há como se admitir a leitura empregada na tese proibicionista em análise, de querer impedir o Ministério Público de recorrer de decisões de absolvição com base na leitura da Constituição da República brasileira ou da Convenção Americana de Direitos Humanos. Não apenas, não é isso que ambas afirmam, como, ao contrário, elas são interpretadas, seja pela jurisprudência interna do Brasil, seja pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de exigir postura ativa do Estado-Ministério Público em favor das vítimas de crimes.

Há, no entanto, um aspecto que precisa ser mais bem discutido e considerado, especialmente de lege ferenda: a mesma Corte Interamericana de Direitos Humanos exige dos Estados signatários da Convenção, efetividade de duplo grau quando a condenação vem apenas em sede de recurso do Ministério Público. A esse respeito, trataremos no próximo e último artigo dessa série.

1 Rodrigo Régnier Chemim Guimarães: Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.

--

[1] Nesse sentido, vide, por exemplo: GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, pg. 107

[2] CARNELUTTI, Francesco. Lecciones Sobre el Proceso Penal. Volume I. Tradução para o espanhol de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Librería “El Foro”, 2000, p. 156, verbis: Si, en las primeras tentativas de sistematización de una teoria general del proceso, desde el punto de vista de la función, me ha parecido que también el proceso penal tiene carácter contencioso, esto se deriva en primer término de la falta de distinción de su doble contenido, penal y civil; además, como pronto se verá, de la confusión, en que yo mismo he caído, entre “litis” e “controversia”. Mi punto de vista era exacto en cuanto a su contenido civil, pero equivocado em cuanto a su contenido penal.

[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo Penal. Curitiba: Juruá, 1989. Em sentido similar, na mesma época, vide também: TUCCI, Rogério Lauria. Considerações acerca da inadmissibilidade de uma teoria geral do processo. In: Revista do Advogado, São Paulo, v. 1, p. 89-103, 2000.

[4] Nesse sentido, a título ilustrativo, vide: NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 230, verbis: “Aos litigantes e intervenientes (autor, réu, litisdenunciado, chamado ao processo, opoente, assistente simples e litisconsorcial e MP, ainda quando atue como fiscal da lei), sejam eles pessoa física, jurídica ou entes com personalidade judiciária (espólio, massa falida, condomínio de apartamentos, Procons, etc), é assegurado o contraditório, seja no processo civil, penal ou administrativo”. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 10ª ed.,São Paulo: Saraiva, 2012, p. 298, verbis: “O conteúdo do princípio constitucional do contraditório é sobejamente claro: garantir aos litigantes o direito de ação e o direito de defesa, respeitando-se a igualdade das partes. Por isso, todos aqueles que tiverem alguma pretensão a ser deduzida em juízo podem invocar o contraditório a seu favor, seja pessoa física ou jurídica. Autores, réus, litisdenunciados, opoentes, chamados ao processo, assistentes litisconsorciais ou simples, Ministério Público, poderão valer-se do vetor enunciado pela Constituição.” SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 157, verbis: “Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. São dois princípios fundamentais do processo penal. O primeiro, de certo modo, já contém o segundo, porque não há contraditório sem ampla defesa (...) A essência processual do contraditório se identifica com a regra ‘audiat altera pars’, que significa que a cada litigante deve ser dada ciência dos atos praticados pelo contendor, para serem contrariados e refutados.” MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed.,São Paulo: Atlas, 2013, pp. 309 e 310, verbis: “O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial criminal e civil ou em procedimento administrativo, inclusive nos militares, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso. (...) Nesse sentido, a afirmação de Smanio, de que “para atingir sua finalidade de solucionar conflitos de natureza penal, os sujeitos processuais parciais devem ser tratados com igualdade em todo o desenrolar do processo”.

[5] Nesse sentido, por todos, vide FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 404: “Através da dedução da acusação o MP chama à responsabilidade perante um tribunal, em nome da comunidade, uma pessoa determinada sobre a qual recai a fundada suspeita de ter cometido uma infracção.” (grifo nosso)

[6] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. 4ª ed., São Paulo: Globo, 2008.

[7] HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira, Belo Horizonte: ed. Líder, 2003, Capítulo nº 83, p. 490.

[8] GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Pacto de San José da Costa Rica. 2ª ed., Coleção Ciências Criminais, vol. 4, Coordenação de Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha. São Paulo: RT, 2009, p. 172.

[9] BRASIL. Constituição da República de 1988. Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

[10] BRASIL. Constituição da República de 1988. Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

[11] IBAÑEZ RIVA, Juana María. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Comentario. STEINER, Christian; URIBE, Patricia (Editores). Bogotá, Colombia: Fundación Konrad Adenauer, 2014, p. 628. Tradução nossa.

[12] IBAÑEZ RIVA, Juana María. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Comentario. Ob. cit., p. 628.

[13] IBAÑEZ RIVA, Juana María. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Comentario. Ob. cit., pp. 628-629.

[14] IBAÑEZ RIVA, Juana María. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Comentario. Ob. cit., p. 631.

[15] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf, acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 141, p. 39.

[16] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf, acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 162, p. 44.

[17] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf, acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 166, p. 45.

[18] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf, acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 169, p. 45.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]