O município de Santa Rita, a 70 quilômetros da fronteira com Foz do Iguaçu, é o retrato da ambiguidade binacional| Foto:

Transumância

Migração começou na década de 50

A marcha de imigrantes brasileiros ao Paraguai teve início no final dos anos 1950 e foi intensa nas duas décadas seguintes, após o governo de Alfredo Stroessner (1954-1989) ter lançado um plano de colonização agrícola. Em 1963, o ditador reformulou o estatuto agrário do Paraguai e permitiu a estrangeiros adquirir terras na área de fronteira, estimulando a entrada de brasileiros que passavam dificuldades no lado de cá.

Dê olho nas terras baratas, os imigrantes cruzavam as fronteiras dos estados de Mato Grosso do Sul e Paraná em caminhões de mudanças. Na bagagem, mudas de roupas, móveis e a esperança de transformar a vida no país vizinho. O termo brasiguaio foi cunhado em 1985, quando o primeiro grupo de imigrantes que vivia no Paraguai retornou ao Brasil. (DP)

CARREGANDO :)
CARREGANDO :)

Foz do Iguaçu - Para alguns eles são aqueles que não deram certo no próprio país, para outros, encarnam os novos bandeirantes. Quem são os brasiguaios, afinal? Imigrantes brasileiros ou cidadãos sem pátria? Uma incursão pelas cidades "brasiguaias" do Paraguai mostra que esses imigrantes aos poucos se inserem cada vez mais na nação guarani, mas ainda mantêm vivo o sentimento verde e amarelo. Santa Rita, a 70 quilômetros da fronteira com Foz do Iguaçu, é o retrato dessa ambiguidade. Na cidade de 27 mil habitantes, onde as rádios tem programas em português e nas ruas pouco se ouve o castelhano, seis de cada dez moradores são brasileiros e descendentes.

Publicidade

A população sabe na ponta da língua o que acontece no Brasil porque as antenas parabólicas se encarregam de conectá-la ao Brasil. O gaúcho Luis Roque Heckler, 53 anos, vive há 32 em Santa Rita. Ele não esqueceu o chimarrão, mas acabou adotando o tererê (mate gelado) em dias de calor. Não se sente longe do Brasil porque Santa Rita é quase uma réplica do Rio Grande do Sul. Lá se dança o vanerão (dança típica dos sulistas), tem concurso de gaita e o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Índio José, palco de exposição agropecuária. "Em casa é chimarrão de manhã e depois das 10 horas o tererê. Nossa cultura é paraguaia e gaúcha", diz.

O futebol também é outro elemento que aproxima os imigrantes do Brasil. Fundador do município de Naranjal, de 15 mil habitantes, o brasileiro Willy Ludeke, 72 anos, não perde pela televisão um jogo do Internacional. "Aqui metade é Inter e metade é Grêmio. Tem até torcida organizada", observa. Mas quando Brasil e Paraguai se enfrentam, a confusão toma conta dos brasiguaios. "Nós não sabemos para quem torcer", diz Heckler. Situada a cem quilômetros da fronteira com Foz, Naranjal é outro município com a marca brasileira. Todos os anos têm a Festa do Costelão, Festa de São João, cavalgadas e a Semana Faroupilla, a exemplo da vizinha Santa Rita.

Ali brotaram as semente plantada por Ludeke, fundador de nove cooperativas no lado brasileiro. "Na época fui convidado pelo governo paraguaio para iniciar um modelo agrícola igual ao do Rio Grande do Sul", conta. Com o tempo, as cooperativas começaram a se firmar. São cinco na região, duas delas em Naranjal. Em uma delas, a Cooperativa de Produção Agropecuária de Naranjal (Copronar), trabalha a paraguaia Margarita Benitez, 26 anos. De espanhol, só o nome. Margarita fala perfeitamente o português porque é filha de brasileira com paraguaio. Mesmo vivendo no Paraguai, ela arrisca a dizer com precisão quem é. "Não sinto que sou mais brasileira ou paraguaia", conta.

Na análise do sociólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), José Lindomar Albuquerque, autor do livro A Dinâmica das Fronteiras – os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e Paraguai, os brasiguaios se apresentam com diferentes identidades, conforme as pessoas com quem estão se relacionando. "Aos brasileiros, eles falam que são brasileiros, para os paraguaios, eles se dizem paraguaios. Eles se autointitulam conforme as situações", diz. Nesse sentido, Albuquerque classifica a identidade dos brasiguaios como uma identidade situacional e negociada.

Para Albuquerque, as disputas entre campesinos e plantadores de soja se transformaram num confronto entre brasileiros e paraguaios. "Os sentimentos nacionalistas em relação ao território e à língua guarani e os ressentimentos do período da Guerra do Paraguai afloram nos discursos dos campesinos paraguaios. Assim, os brasileiros são acusados de ‘invasores’, ‘novos bandeirantes’, ‘herança de Stroessner’", diz. Ao mesmo tempo, segundo ele, os brasileiros assumem uma postura nacionalista e destacam sua superioridade tecnológica e cultural. "Eles se autodefinem como ‘trabalhadores’, ‘pioneiros’ e pertencentes a um país mais desenvolvido", explica.

Publicidade

Filho de brasileiro, brasileirinho é

Nem todos imigrantes e descendentes encontraram a mesma sorte no Paraguai. Filho de brasileiros, o agricultor Odir Gobbi, de 30 anos, nasceu lá, mas nem por isso ficou livre das pressões dos campesinos, até mesmo pelo sotaque ao falar o espanhol e o domínio do idioma português. Desde o ano passado, ele está impedido de plantar em uma área de 10 hectares, no distrito de Marizcal Francisco Solano Lopéz, a 60 quilômetros da fronteira com Foz do Iguaçu. Não adianta chamar a polícia ou dizer que é paraguaio.

"Para as autoridades nós somos paraguaios. Mas os campesinos nos veem como colonos brasiguaios. Eles nos dizem ‘filho de brasileiro, brasileirinho é’", conta. Desanimados com a vida no país vizinho, hoje Gobbi e a esposa só conseguem sobreviver porque possuem outro lote de terras com 30 hectares. Com tantos percalços, Gobbi não sabe ao certo quem é. "Não me sinto um paraguaio", diz. Enquanto ele ainda teima em viver no Paraguai, outros pequenos agricultores preferiram deixar tudo para trás e cair nos braços do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) do Brasil.

Antonio Gella, de 65 anos, é um deles. Ele precisou deixar para trás uma área de 92 hectares invadida por campesinos em Marizcal Lopéz para engrossar as fileiras de brasiguaios que hoje ocupam barracos às margens da BR-163, no município de Itaquiraí (MS), área sob domínio do MST. "Nossa vida estava boa, não éramos ricos, mas tínhamos uma propriedade com trator, açude de peixe", lembra. Gella vivia havia 41 anos no Paraguai, onde ainda vivem sete de seus filhos.