A imagem mais remota que guardo na lembrança é a de meu pai lendo um livro na sala, sob a luz do abajur. Não há tempo que apague a cena ocorrida há 40 anos. Morávamos em um apartamento pequeno; eu dormia na sala. Menino de 1 ou 2 anos, não poderia imaginar que um fato tão simples o pai lê um livro na poltrona, sob a luz do abajur ficaria comigo para sempre. Ouso dizer que naquele momento está a origem da minha vida.
Mais tarde, quando entrei na escola, meu pai me presenteou com vários livros. Astronomia e geografia eram os assuntos que mais me interessavam. Desconfio, no entanto, que meu pai lia algum romance russo ou francês naquela noite.
O pai de Carlos era marceneiro. Não tinha condições de comprar livros para o filho, mas queria que ele estudasse. Numa aula de Geografia, a professora perguntou por que Carlos não estava com o livro da matéria. Ele ficou com vergonha de dizer que o pai não tinha dinheiro para comprar o material. Quando a professora estava a ponto de expulsar o aluno da sala, a colega Mariana se levantou e disse: "O pai do Carlos é marceneiro e um cliente deixou de pagar pelo serviço. Mas, se ele quiser, pode estudar com o meu livro, professora."
No livro de Mariana, Carlos viu as imagens de países distantes: Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Rússia, Egito, Terra Santa, Índia, China, Japão. E prometeu a si mesmo, em silêncio, que um dia conheceria aqueles lugares.
Em seu aniversário, Mateus recebeu um livro de Astronomia como presente dos tios Lia e João. O menino ficou fascinado com a descrição de planetas, estrelas e galáxias. Com linguagem envolvente e belas ilustrações, o livro mencionava a busca de vida extraterrestre e descrevia as condições necessárias para o surgimento dos seres vivos. Mateus nunca mais deixou de pensar no assunto.
Depois de concluir o curso secundário, Paulo mudou-se para a cidade grande. Queria estudar Direito na melhor faculdade do país. Foi até a sede de um cursinho pré-vestibular, onde conversou com o diretor da escola. Com um sorriso simpático, o homem ouviu a história do rapaz de interior que queria vencer na vida. Ao fim, disse: "Vou ser sincero. Não perca o seu dinheiro fazendo cursinho. Acho que você não tem nenhuma chance." Mesmo assim, Paulo comprou os livros para estudar sozinho.
Carlos, o filho do marceneiro, tornou-se professor universitário e fotógrafo. Conheceu todos os lugares que vira no livro compartilhado por Mariana. Percorreu o mundo, fez imagens e publicou livros. Nunca mais viu a ex-colega, mas até hoje a procura para dizer obrigado.
"Obrigado" é uma palavra que Mateus faz questão de dizer sempre aos tios Lia e João. Ele se tornou pesquisador na área de bioquímica, com estudos sobre a origem da vida. O trabalho de Mateus vem sendo reconhecido por importantes nomes da ciência. Na semana passada, recebeu um convite que poderá mudar sua vida. Escreveu aos tios: "Imediatamente me lembrei daquele livro de Astronomia que vocês me deram quando eu era criança. Agradeço a vocês por terem tido a iniciativa de estimular a mente curiosa de um menininho que queria ser músico, poeta, escritor, astronauta, inventor, cientista..."
Paulo estudou sozinho e passou no vestibular da melhor faculdade do país. Voltou ao cursinho para dar a notícia ao diretor, que o recebeu com elogios: "Parabéns! Na verdade, garoto, eu só queria incentivá-lo a estudar mais." Nos anos seguintes, Paulo estudou, trabalhou, formou-se, casou-se, mudou para um apartamento pequeno e teve dois filhos.
Paulo é o homem que lia na sala 40 anos atrás. Sob a luz do abajur, meu pai provavelmente tinha nas mãos um romance: Guerra e Paz, Crime e Castigo, Pais e Filhos ou O Tempo Redescoberto. Mas eu gosto de pensar que o livro poderia ter o mesmo título desta crônica.
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