A democracia está em declínio, ou até mesmo em retirada? Pergunte ao Google e você terá nada menos que 3,85 milhões de resultados. Use o Google Scholar para filtrar apenas as referências no mundo acadêmico e você ainda tem nada desprezíveis 136 mil entradas.
Sempre houve uma lacuna entre a democracia como ideal e como ela é na prática. Ela promete autonomia e igualdade, mas entrega heteronomia e desigualdade. Isso, por sua vez, produz a “democracia realmente existente” (vamos usar a sigla DRE), sempre incompleta e defeituosa. Nas “democracias recentemente surgidas” (DRSs), a lacuna pode ser ainda maior. E, em ambos casos, ela tem se alargado desde o início dos anos 80.
O que é peculiar nessa crise ampla é que virtualmente ninguém acredita que ela vá destruir a democracia e trazer de volta os autoritarismos, uma vez que um país cruza o limiar da consolidação. Simplesmente não há outra alternativa plausível à mão. Em outras palavras, parafraseando Lampedusa, “a democracia vai sobreviver, mas só se mudar – se não completamente, pelo menos significativamente”. Que mudanças serão essas, no entanto, não está nada claro.
Hoje, os revolucionários estão raros e quase em descrédito. Seus substitutos terroristas, em vez de enfraquecer, fortalecem o statu quo.
- As exigências da democracia digital (Artigo de Lucy Bernholz, publicado no dia 23 de novembro de 2015)
- Democracia deliberativa – ouvindo o povo (Artigo de James Fishkin, publicado no dia 22 de novembro de 2015)
- Avaliando a democracia local pela perspectiva do cidadão (Artigo de Melida Jimenez, publicado no dia 21 de novembro de 2015)
- A nãoviolência nas democracias (Artigo de Jamila Raqib, publicado no dia 18 de novembro de 2015)
Pensamento imaginativo e experiências reais com reformas têm acontecido tanto em DREs quanto em DRSs. Muito disso nem ganhou notoriedade porque está ocorrendo no nível local e de um modo mais ou menos esporádico. Até onde eu sei, não há uma relação completa desses esforços de reforma, mas posso oferecer algumas amostras importantes.
1. Provavelmente a inovação mais frequente tem sido a proliferação de locais e assuntos que passaram por referendos e iniciativas nos níveis nacional e subnacional.
2. “Orçamentos participativos”, a convocação de cidadãos para discutir a aplicação de parte do orçamento. Isso começou em Porto Alegre e se espalhou pelo Brasil, pela América Latina e outros continentes.
3. O uso de primárias como método de seleção dos pré-candidatos a uma disputa por um partido político foi, por muito tempo, uma característica da política norte-americana, mas recentemente tem sido adotado por outros países.
4. O financiamento publico a partidos políticos é outra inovação relativamente recente, e uma que se espalhou das DREs europeias para as DRSs.
5. Cotas para mulheres entre candidatos em eleições, para cadeiras em parlamentos ou para posições em ministérios se tornaram quase o padrão em muitas DREs e DRSs. Mas ainda é pouco comum a ideia de que minorias étnicas, linguísticas ou religiosas que sofreram discriminação também merecem cotas.
6. A devolução de maiores poderes a unidades políticas subnacionais está se tornando mais comum. A maioria das democracias recentes, e muitas democracias consolidadas na Europa Ocidental recentemente transferiram um poder decisão considerável a regiões, províncias e municípios.
7. Para corrigir a “miopia” das DREs, houve uma explosão de “comissões futuras”, algumas dentro de governos, outras em ONGs ou em think tanks. Está se tornando cada vez mais obrigatório que referendos e propostas legislativas sejam acompanhadas de uma avaliação feita por especialistas a respeito de eventuais custos e consequências.
8. A proliferação de “atos de liberdade de informação” em todo o mundo tem ajudado a manter os cidadãos melhor informados sobre o comportamento de seus líderes. Essas leis dão a cada indivíduo e associação cívica acesso a material coletado por governos – até mesmo a informações que estão sendo usadas neste exato momento nos processos de tomada de decisão.
9. Novas tecnologias de informação e comunicação têm dado aos cidadãos acesso a fontes de informação que as autoridades estabelecidas não conseguem controlar ou censurar, e que frequentemente denunciam comportamentos que os governantes adorariam manter escondidos. A sociedade civil organizada tem usado essas tecnologias para montar “unidades virtuais” de ação coletiva.
10. Os próximos passos nessa transformação tecnológica são o uso das tecnologias para influenciar a escolha de candidatos e a elaboração de programas partidários, combinando as preferências pessoais com as plataformas de partidos e candidatos (o chamado “voto inteligente”) e, finalmente, com reflexos no próprio ato de votar.
11. Alguns países lançaram um novo sistema de financiamento para a sociedade civil. Os cidadãos podem destinar uma porcentagem fixa de suas obrigações tributárias para uma (ou mais de uma) organização de sua escolha, ou escolhida entre uma lista de associações, instituições ou agências.
12. A natureza da cidadania – a mais básica das instituições democráticas – está mudando. Há uma tendência de estabelecer a idade de “maturidade política” aos 16 anos. Cidadãos que vivem em outro país podem votar em suas embaixadas ou consulados. Estrangeiros com direito legal de residência estão ganhando direitos de voto ou, pelo menos, de serem consultados.
13. A representação por grupo estava presente na fundação da demokratia na antiga Atenas. Uma nova forma dessa representação é a criação de pequenos grupos deliberativos que reúnem uma amostra aleatória de cidadãos, registra sua posição inicial, sujeita-os à discussão de pontos de vista alternativa, testa-os para potenciais mudanças de opinião e publica os resultados.
14. Tem havido um aumento extraordinário no número de pessoas não eleitas que dizem representar cidadãos com base em sua experiência profissional ou organizacional, com base em sua personalidade marcante ou mesmo em sua celebridade – e há evidência abundante de que esse status de representante é aceito por muitos.
Não há um padrão fixo emergindo desses esforços de reforma. Eles contêm traços de democracias “pré-liberais” ou “mais liberais”. É até mesmo possível que elas levem a democracias “pós-liberais”. De qualquer modo, é quase impossível superestimar a enorme entropia lançada dentro das DREs. Esforços anteriores para fechar a lacuna entre as expectativas idealizadas e o resultado real exigiam pelo menos a sombra, quando não a ameaça iminente, de uma revolução. Hoje, os revolucionários estão raros e quase em descrédito. Seus substitutos terroristas, em vez de enfraquecer, fortalecem a vontade de manter o statu quo.