A Suprema Corte da Espanha condenou o juiz Baltazar Garzón a 11 anos de afastamento da função por entender que ele abusou ao determinar escutas telefônicas não autorizadas por lei e também violou a Lei de Anistia de 1977 que alcançou a ditadura Franco e a Guerra Civil. A decisão muito se assemelha ao ostracismo utilizado na antiguidade em Atenas para impedir que personalidades salientes desequilibrassem a democracia.
Garzón, com estampa de manequim da alta costura europeia, tornou-se celebridade ao determinar a prisão de Augusto Pinochet, em 1998. Ao fim e ao cabo o tirano conseguiu voltar livre ao Chile, onde morreu em 2006, aos 91 anos. De certa forma, não precisou morrer para entrar para a História. Ocaso de um, aurora de outro. Garzón, então jovem juiz, surfou a onda do politicamente correto e encarnou a Espanha moderna, democrática, rica, protetora dos direitos fundamentais e da dignidade humana. Tempus aurum para sempre só em histórias infantis. Hoje a riqueza espanhola se mostra frágil, os indignados acampam nas praças sem ter nada a dizer sobre o futuro e o juiz popstar perdeu poder jurisdicional.
O Judiciário espanhol demonstra que a democracia está em pleno funcionamento ao ratificar o valor da obediência à lei e dos limites que os detentores de poder político, inclusive os juízes, devem observar. Tudo está em construção e não em ruína. A tristeza de ver uma celebridade sucumbir à tentação de performances espetaculares para se manter na ribalta contrapõe-se a alegria de perceber que as instituições funcionaram de modo impessoal, sem receio de acabar com a fama de magistrado notório. Garzón e Pinochet passaram pelo mesmo local no tribunal: o banco dos réus. A Espanha deve se orgulhar de ter levado ambos a julgamento porque nos dois casos se estabeleceram marcos sobre a existência de responsabilidade pelo uso do poder. O caso Pinochet alavancou a criação do Tribunal Penal Internacional e tiranos passaram a temer mandados de prisão ao saírem de seus países. O caso Garzón denota a supremacia das instituições sobre as idiossincrasias e voluntarismos pessoais, ainda que bem-intencionados.
Quis custodiet ipsos custodes? Quem custodia o custodiador, perguntavam os romanos com sua imensa sabedoria política. Infelizmente, ninguém encontrou a resposta perfeita. Os espanhóis mostraram que se esforçam por encontrar o caminho. E nós? Bem, a decisão do Supremo Tribunal Federal na semana passada reconhecendo o poder correcional originário do Conselho Nacional de Justiça abriu senda para que estabeleçamos posturas de boa qualidade ética e política como as da Espanha. Os juízes, ao exercerem o dever de prestar jurisdição, funcionam como custodiadores das instituições morais e legais. A bem da missão, devem agir dentro das linhas que delimitam o interesse público. Para assegurar que não desbordem, criou-se o CNJ. Como qualquer obra humana, sempre susceptível a aperfeiçoamento.
O protagonismo institucional do Poder Judiciário na modernidade não estava no campo de visão de Montesquieu e dos seus discípulos. Ao incremento de poder, igual responsabilidade; essa é a moral do caso Garzón.