A tela branca sobre o cavalete, pincéis, tintas a óleo, paleta para guache, boina francesa, a curva de um rio margeado por salgueiros. O pintor olha para lá e cá, cima e baixo. Desolado com o "branco" criativo, imagina-se num café parisiense onde se reúnem gigantes. Sem compromisso com a realidade, vê Leonardo, Michelangelo, Rembrandt, Van Gogh, Picasso, Di Cavalcanti, Ceschiatti, Jorge Luis Borges, Neruda, Kenzo, Kahlo; numa mesa, Cartola e Hendrix divertem-se com as piadas de Mozart; noutra, a Vênus de Milo conversa com a Mona Lisa enquanto posam à Abaporu para Tarsila. Delirante, estica o ouvido a todas as prosas para aurir genialidade inspiradora de obra-prima.
Artesanato, criação única, irrepetível. O bailado da renda de bilro toma conta de sua cabeça e as cantigas de antanho entoadas pelas rendeiras que fazem ritmo com os pauzinhos que tecem peças singulares, delicadas, definitivas. Tudo fica borrado na mente que deseja criar, como tinta de todas as cores em movimento, sem assentar a mistura ou preponderância. Súbito, miúda caixa adornada com palha de trigo com estrelas, flores, cruzes, sinais, beleza que brota de mãos inesperadas, quase rudes. Mas a tela continua lá, nua. A alvura do tecido machuca a visão enquanto a mente deseja traços, cores, formas, profundidades.
Pensa numa "instalação" como a sucata de Kombis na UnB em Brasília. Não! Eu sou conservador, quero fazer arte à antiga, aquela que exige perícia no desenho, nas letras, nas partituras, no cinzel, nas linhas e agulhas. Embatucado, o pincel parece baqueta nervosa, a marcar compasso do coração em arritmia. Preparei tudo para relaxar, não para tensionar, pensa e começa a détente consigo mesmo. Mais calmo, mira o entorno. As pessoas passam e olham a cena de pintura, fazendo imagens do pintor que não pintou. Veem, passam. O Barigui fervilha num raro domingo azul.
São tantos olhos para a arte não exprimida que ele começa a ficar constrangido, sem jeito, envergonhado. Olha para o sol, muda o cavalete de posição, mede a luz com os dedos fazendo sombras sobre a tela. E nada! Nenhuma das cores do mundo encanta o pincel. Um transeunte puxa papo, pergunta sobre o quadro que será pincelado. O artista gesticula, parece se animar com a indagação, como se da fala fosse surgir a inspiração. O passante passa e o vazio fica.
Começa a recolher a tralha raivosamente. Tira a boina, afinal o Barigui não é o Sena e ele não está na Rive Gauche. Apiedado, caminho em sua direção para ajudar a transportar os badulaques até o carro e sou interceptado por uma jovem de patins que chega antes ao pintor e se propõe a posar para ele. Natureza viva e viva a natureza! A sílfide o mobiliza de tal modo que ele, antes de responder com palavras, começa a rearmar os petrechos.
Detenho-me para apreciar as poses que se assemelham às de cantora de funk enquanto ele pincela com pressa. Abruptamente ela rola os patins e some. O artista quebra o pincel, fura a tela em vários lugares, a põe na lixeira e vai embora.
Olho a tela dentro do latão e lá a deixo, decepcionado. Imaginei tanta coisa na cena da pintura, mas a realidade tem o sabor de segunda-feira.