O geólogo João José Bigarella – o mais universal dos paranaenses – completa 92 anos em setembro. Nesse tempo, firmou-se como um dos papas do ambientalismo no Brasil. Como é de praxe no ofício, defendeu tantas causas que um biógrafo, por mais adestrado que seja, precisará de um conselho de peritos para checar a lista. O próprio cientista, um ás da objetividade, se perde nas contas das bandeiras que hasteou – exceto numa: o tempo dedicado à luta pela erradicação da Estrada do Colono, nada menos do que 67 anos.
O assunto ainda lhe prega sustos, não à toa. Apesar de a legitimidade da via ter sido negada pelo governo em 1986, seus detratores argumentam “direito adquirido”. O caminho teria registros ainda no século 19; marcou a história ao servir de atalho para a Coluna Prestes, em 1925 e surgiu como estrada em 1953. Clandestina, mas estrada.
Além do mais, diz-se que asfalto não afugenta onça. Que são só 18 quilômetros. Que sem rodovia asfaltada não haverá progresso. Que é possível conciliar o projeto de free way na mata com o pomposo título de Patrimônio Natural Mundial – mesmo debaixo da certeza de que a Unesco vai mandar o Paraná plantar batatas.
Não são nem um nem dois a seguir o mesmo raciocínio. Em 2001, quando a Estrada do Colono parecia passado, 250 manifestantes ocuparam o que sobrou da via – com tratores, pois não estavam para brincadeira. Houve estrago, mas o entorno se recuperou. Só não houve final feliz porque ano passado o deputado federal Assis do Couto (PT-PR) subiu no palanque e reabriu as negociações.
No entender de Couto, o local deveria ser liberado porque o fechamento não teve motivos ambientais, mas políticos – ocultar o assassinato, ali, de membros da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR. A relação entre uma coisa e outra é estapafúrdia, mas a proposta chegou ao Senado, sem freios, passando por cima da legislação que rege unidades de conservação. Um disparate, na opinião de dez entre dez pesquisadores, em especial um, Bigarella.
As quase sete décadas em que está debruçado sobre o assunto fazem dele o coronel Fawcett do Parque Nacional do Iguaçu – no qual é moral e tecnicamente a maior autoridade. Antes de fazer pesquisas nos quatro cantos da África, João José Bigarella viajou pelo Paraná. Nunca foi de serviço leve.
Era um recém-formado quando, em 1944, o interventor Manoel Ribas o nomeou para o Museu Paranaense. Enfrentou resistências para fazer pesquisas, como a de cabeças coroadas feito a do alemão Reinhard Maack. Venceu: em janeiro de 1948, na companhia do antropólogo e fotógrafo tcheco Vladimir Kozák, da irmã dele – Karla –, do estudante de Medicina Carlos Goverger, partiu para a primeira de suas grandes expedições.
Tinha 25 anos e passou 40 dias no leito do Rio Paraná. Estudou formações geológicas, flora e fauna, incluindo, na volta do percurso, a área transformada em Parque Nacional do Iguaçu por Vargas, em 1939. Com Kozák, fotografou e filmou. O grupo comia o que pescava e os frutos da mata. Num pequeno vapor, o quarteto chegou até as Sete Quedas e – proeza ainda rara – às Cataratas. “A geologia era uma forma de aventura”, reconhece. Ninguém tem dúvida.
Goverger, armado de pistola, colheu amostras de animais para o setor de taxidermia do Museu Paranaense. Bigarella teve com os ribeirinhos, na maioria foragidos da polícia. “Eram cordatos, ninguém dizia”, lembra o cientista que, em certo sentido, nunca mais voltou da expedição. Daquele ano em diante, manteve o parque na mira – em passeios de férias, voos para avaliar a devastação e na defesa da integridade do local. Seus artigos de jornal eram furiosos.
Entre 1986 e 1988, Bigarella publicou na Gazeta do Povo e em outros as 1001 razões para não permitir nenhuma variante da Estrada do Colono – nem trilha, nem atalho, nem rodovia asfaltada. “Que façam o contorno”, irrita-se ainda hoje. “A estrada será o fim do parque, estou convencido disso.”
Em tempo. A luta do cientista e de sua mulher – a artista plástica Íris Bigarella – pela integridade do Parque Nacional do Iguaçu ainda está à espera de reconhecimento. Na década de 1970, Íris deu início à Adea – Associação de Defesa e Educação Ambiental, uma das primeiras do gênero no país. Se a expedição de 1948 coloca Bigarella na história da ecologia no Brasil, a fundação da Adea põe o casal na dianteira do ativismo ambiental. Para que se tenha uma ideia, em 1988 – quando nasceu a insistência em fazer do parque uma floresta com uma rodovia no meio – a associação conseguiu mobilizar 71 atividades para promover uma grita geral contra o que chamavam de mutilação. Atentado a um ecossistema complexo. E descumprimento de acordos internacionais. Melhor não cutucá-los com vara curta.