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Cristovão Tezza

Uma estranha realidade

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Toda a minha formação foi racionalizante. Adolescente, em vez de O senhor dos anéis e Harry Potter, fantasias transcendentes dominadas pela magia, eu devorava Júlio Verne e Conan Doyle, autores cujo objeto era a chamada "realidade" (que hoje só se coloca entre aspas, como se ela não existisse) e cujo modo de reconhecimento de mundo era, digamos assim, a razão cartesiana. Conan Doyle (1859-1930) acreditava em espíritos e chegou a participar com fé daquelas mesas que chamam almas, é verdade, mas em nenhuma página seu Sherlock Holmes aceitou algum agente sobrenatural – lutava sempre para desmistificá-los e comprovar que tudo pode ser demonstrado pela percepção lógica dos fatos. É o caso engraçado de um personagem mais inteligente que o autor; não por acaso, todos lemos hoje as histórias de Sherlock Holmes, que são fontes inesgotáveis de imaginação, mas as de Conan Doyle, pai do Sherlock, ninguém mais lê.

Quando eu já era quase adulto, na virada dos anos 60 para os 70, vivi um surto de irracionalismo redentor, que era o espírito do tempo, em todas as áreas, da filosofia à política. Havia quem achasse que um foco guerrilheiro derrubaria o governo e quem achasse que a fumaça da cannabis abriria as portas da percepção. Eu até tentei me irracionalizar, lendo Uma estranha realidade, de Carlos Castañeda, e O céu e o inferno, de Aldous Huxley – o primeiro era a versão popular, o segundo a erudita, da crença de que mascar mescalina, uma substância alucinógena, nos transformava em pessoas superiores. O tempo passou, felizmente os primeiros foram para a política e os segundos para a igreja, e eu virei professor, ao longo daqueles anos sem graça e sem luzes. Quisera ter novamente um lampejo irracional!

Pois ele veio na forma do futebol. Estranha realidade, céu e inferno. Pouco a pouco, fui encontrando na perdição do jogo um sentido para a vida. O campo, as quatro linhas, o gramado, os 90 minutos divididos em dois mundos passaram a ser a minha mesa verde, onde passo os anos depositando fichas como o jogador de Dostoiévski. Um tiro de escanteio bem cobrado, na cabeça do atacante – saudades do Washington! –, é um alexandrino perfeito com cesura na sexta sílaba! Houve um instante, há um século, em que Kleberson chutou do meio do campo, pegou um goleiro distraído e empatou já no juízo final, um empate de soa­­rem as trombetas no céu! São fragmentos de felicidade que vou costurando no rosário do meu sofrimento. Toda a racionalidade de uma vida inteira vira pó: o respeitável professor revela o pior da alma diante de uma derrota no Ceará. Até meu filho, assustado com o monstro caseiro que se revela a cada lance do jogo, implora: "Pai, vai ler livro na sala que eu vejo o jogo pra você!"

Mal acaba a partida, abro sôfrego o jornal: quando será a próxima? Não sei por que sou torcedor.

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