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Toda a minha formação foi racionalizante. Adolescente, em vez de O senhor dos anéis e Harry Potter, fantasias transcendentes dominadas pela magia, eu devorava Júlio Verne e Conan Doyle, autores cujo objeto era a chamada "realidade" (que hoje só se coloca entre aspas, como se ela não existisse) e cujo modo de reconhecimento de mundo era, digamos assim, a razão cartesiana. Conan Doyle (1859-1930) acreditava em espíritos e chegou a participar com fé daquelas mesas que chamam almas, é verdade, mas em nenhuma página seu Sherlock Holmes aceitou algum agente sobrenatural – lutava sempre para desmistificá-los e comprovar que tudo pode ser demonstrado pela percepção lógica dos fatos. É o caso engraçado de um personagem mais inteligente que o autor; não por acaso, todos lemos hoje as histórias de Sherlock Holmes, que são fontes inesgotáveis de imaginação, mas as de Conan Doyle, pai do Sherlock, ninguém mais lê.

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Quando eu já era quase adulto, na virada dos anos 60 para os 70, vivi um surto de irracionalismo redentor, que era o espírito do tempo, em todas as áreas, da filosofia à política. Havia quem achasse que um foco guerrilheiro derrubaria o governo e quem achasse que a fumaça da cannabis abriria as portas da percepção. Eu até tentei me irracionalizar, lendo Uma estranha realidade, de Carlos Castañeda, e O céu e o inferno, de Aldous Huxley – o primeiro era a versão popular, o segundo a erudita, da crença de que mascar mescalina, uma substância alucinógena, nos transformava em pessoas superiores. O tempo passou, felizmente os primeiros foram para a política e os segundos para a igreja, e eu virei professor, ao longo daqueles anos sem graça e sem luzes. Quisera ter novamente um lampejo irracional!

Pois ele veio na forma do futebol. Estranha realidade, céu e inferno. Pouco a pouco, fui encontrando na perdição do jogo um sentido para a vida. O campo, as quatro linhas, o gramado, os 90 minutos divididos em dois mundos passaram a ser a minha mesa verde, onde passo os anos depositando fichas como o jogador de Dostoiévski. Um tiro de escanteio bem cobrado, na cabeça do atacante – saudades do Washington! –, é um alexandrino perfeito com cesura na sexta sílaba! Houve um instante, há um século, em que Kleberson chutou do meio do campo, pegou um goleiro distraído e empatou já no juízo final, um empate de soa­­rem as trombetas no céu! São fragmentos de felicidade que vou costurando no rosário do meu sofrimento. Toda a racionalidade de uma vida inteira vira pó: o respeitável professor revela o pior da alma diante de uma derrota no Ceará. Até meu filho, assustado com o monstro caseiro que se revela a cada lance do jogo, implora: "Pai, vai ler livro na sala que eu vejo o jogo pra você!"

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Mal acaba a partida, abro sôfrego o jornal: quando será a próxima? Não sei por que sou torcedor.