Em tempos de feiras e feirões de novos e seminovos, Curitiba acertou o pé com a 1.ª Bienal do Livro. Termina hoje, aliás, o que leva Natureza Morta a recomendar uma visita, até porque lá também há muito de novo e seminovo.
Para ele, foram momentos grandiosos de contato com livros idem, alguns escritores igualmente e outros nem tanto. O solitário da Vila Piroquinha vem catando milho (mentalmente) há seis meses para concluir a leitura em espanhol de Dom Quixote de La Mancha. Ou melhor, Don Quijote de La Mancha, a alentada edición del IV centenario da obra, iniciativa da Real Academia Española Asociación de Academias de la Lengua Española.
Um desafio para quem tenta beber no original (já o Beronha se contenta em beber uma Original). O livro é enriquecido pela presentación de Mario Vargas Llosa (Uma novela para el siglo XXI), mais Francisco Ayala (La invención del Quijote) e Martín de Riquer (Cervantes y el Quijote), além de Francisco Rio ("Nota al texto") e La Lengua de Cervantes y el Quijote, de José Manuel Blecua, Guillermo Rojo, José Antonio Pascual, Margit Frenk e Claudio Guillén. Uma seleção que lembra a Fúria da Copa de 50.
Não é só por isso, intervém Beronha, para quem o problema é outro.
São 1.249 páginas! E em absurdo corpo 8! Ou seria 8 sobre 9?
De qualquer maneira, é um monumento ao gênio Miguel de Cervantes Saavedra. Tem, é claro, seus percalços para o leitor menos preparado. Natureza, por exemplo, se declara um estóico garimpador, entre o neófito e o jejuno, mas encara o trabalho e os desafios de Dom Quixote e o fiel escudeiro Sancho Pança. E, como coisa boa atrai boa leitura, eis que Natureza, entre novos e seminovos, descobriu na Bienal Um Escravo Chamado Cervantes Um Retrato do Criador de Dom Quixote, de Fernando Arrabal, lançado aqui em 1999, pela Record.
Arrabal é ele mesmo, dramaturgo mais conhecido no Brasil, quem sabe, pelo chamado Teatro do Pânico, cujos espetáculos, entre eles O Cemitério de Automóveis, foram definidos como "festas extravagantes e primitivas, a meio caminho entre a maravilha e o horror". Clandestinamente, Natureza assistiu a O Cemitério de Automóveis no tumultuado 1968, em São Paulo, Teatro 13 de Maio, com Stênio Garcia. Um olho na cena e outro na repressão, é claro.
Voltando ao livro: com o permanente espírito provocador, Arrabal começa com um "Prólogo ao ocupado leitor", seguido de "A terceira mão de Cervantes", "Um escravo chamado Cervantes", "Árvore genealógica da família de Cervantes, "Árvore genealógica da mãe de Cervantes" e dois mapas, um da Espanha e outro da Europa. Como se sabe, Cervantes nasceu em 1547 e Dom Quixote foi escrito em duas partes (1605 e 1615). O autor morreu em 1616, o outro continua vivíssimo como a própria precariedade da condição humana. Com base em documento de 1569, achado em 1820, Arrabal revela que Cervantes, de "origens judias", aos 21 anos foi condenado pelo Rei da Espanha, por acusação de homossexualismo, a ter a mão direita amputada e a um desterro de 10 anos. Afofou o pelo para "terras italianas". Afinal, nem tudo é imaginação literária perante moinhos de vento. Mesmo que eles não se apresentem vestindo "almalafa" (capa larga).
Francisco Camargo é jornalista.
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