Antigamente, o sujeito que não fazia nada tinha uma desculpa na ponta da língua: "Sou poeta". Na década de 70, quando indagado pelo pai da namorada, alegava ser "excedente de Medicina". E, hoje, parece que todo mundo virou escritor.
A propósito, Álvaro Lins, um dos maiores críticos literários do Brasil, em Os Mortos de Sobrecasaca Ensaios e Estudos, da Editora Civilização Brasileira (1963), aborda o que chama de "divertimento" literário.
Beronha: é o Natureza com seu embornal de cabo de esquadra...
Natureza, inabalável: o texto foi publicado originalmente em dezembro de 1940, mas continua vivíssimo. Transcrevo: "Divertimento" literário. Público e escritores não chegaram ainda no Brasil a realizar aquela unidade que é o fundamento do equilíbrio cultural. De certa maneira, podemos dizer que nos falta um público literário. Os que poderiam ser leitores inteligentes (os que só deveriam ser leitores) também querem ser escritores. Quem, entre nós, se sente capaz de ler um livro também se sente capaz de escrever um artigo. (...) A maioria vai constituir a vasta população do subúrbio literário a subliteratura que é uma coisa muito divertida e muito triste, ao mesmo tempo.
Álvaro propõe, então, uma "antologia de caráter profilático": "As páginas significativas dos piores escritores, trechos ilustrativos da subliteratura, obras que indicassem ao público o que ele não deve admirar e aos jovens o que não devem imitar. Seria da máxima utilidade", arremata.
Natureza mergulhou em seus alfarrábios depois de ler Leite Derramado, para confirmar que Chico Buarque nunca foi do "divertimento". E retira da carteira o recorte da crônica Ainda não li e já gostei, de 23 de abril, de Luis Fernando Verissimo:
Acho que quando a nossa geração tiver de fazer um balanço dos seus merecimentos e misérias para ser julgada, podemos todos usar esta credencial: fomos contemporâneos do Chico Buarque. E exigir tratamento especial.
De fato. Não bastasse o talento no campo da música, Chico, 64 anos, também dá banho na literatura. Sobre o poeta, Natureza tem tudo decorado para "cantarolar" exemplos.
Em Quem Te Viu, Quem Te vê, ele é demolidor (sem perder a ternura) quando diz "Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria/Quero que você me assista na mais fina companhia/Se você sentir saudade por favor não dê na vista/Bate palma com vontade, faz de conta que é turista".
Em Acorda Amor, Julinho da Adelaide* saca outra, sobre a chegada dos homens da ditadura (nunca ditabranda):
"Se eu demorar uns meses/ Convém, às vezes, você sofrer/Mas depois de um ano eu não vindo/Ponha a roupa de domingo/E pode me esquecer.
(...) Dia desses chega a sua hora/Não discuta à toa não reclame/Clame, chame lá, chame, chame/Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão/(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)."
Em tempos de meras resenhas, voltar a Álvaro Lins não é ser saudosista ou gigolô do passado. É obrigação. Habitando ou não o subúrbio literário.
* Para driblar a censura, Chico inventou o Julinho da Adelaide. E continuou nas paradas mesmo sem aparecer. Gênio.
Francisco Camargo é jornalista.
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