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José Carlos Fernandes

Os pastores do Parque Barigui

 | Foto: Jonathan Campos / Ilustração: Felipe Lima
(Foto: Foto: Jonathan Campos / Ilustração: Felipe Lima)

Quando contam o que fa­­zem da vida, os funcio­­nários públicos An­­tônio de Souza Freitas, 66 anos, e Laudelino Matoso, 44, sabem que vão ouvir alguma gracinha. Eles são pastores. Mas não pregam em nenhuma igreja, não operam curas milagrosas nem animam programas em rádio AM. O posto de trabalho dos dois é o Parque Barigui, on­­de das 8 da matina às 5 da tarde conduzem ovelhas pelas gramas verdejantes e, no momento, encharcadas.

Bem, se já lhe veio à mente a imagem terna de Jesus abraçado a um carneirinho, um trecho do Salmo 22 ou um hino religioso na voz encorpada do padre Re­­ginaldo Manzotti, esqueça. A contar pela descrição dos interessados, pastorear ovelhas é quase tão estressante quanto ser controlador de voo no Aeroporto de Congonhas.

Cedo, muito cedo, Laudelino e Antônio soltam a bicharada do aprisco – que fica bem atrás do QG da Guarda Municipal, onde os maiorais de farda assistem de camarote ao corre-corre de nossos heróis anônimos. Mal sabem. Para quem nunca sentiu, os odores ovinos têm a intensidade das piores fragrâncias. Nem um balde de Cândida resolve. De tão onipresente, fazem a gente jurar que alguma caca grudou na sola do sapato. O que os olhos veem, o nariz não acredita.

Mas da missa é a metade. As ovelhinhas, tão lindas, quem diria, são cabecinhas de vento, o que exige dos pastores ter olhos na nuca e pernas de saracura pa­­ra acudi-las. Basta dar uma virada para cuspir e uma delas já se mandou, saltitante, avoada e in­­grata, carregando 60 quilos de lã, correndo o risco de ser atropelada por playboys ou vileiros em suas máquinas envenenadas.

Não é o único perigo. Há os cães. Aparentemente inofensivos, com suas tchutchucas penteadas nos melhores petshops do Champagnat, projetam-se feito suçuaranas contra as pobres descabeladas e encardidas. À revelia do que apregoam os especialistas em mundo animal, eu diria que se trata de um conflito estético que nem Kant, nem a Marly – a do salão – resolveriam.

Acaba que de tanto acudir ovelhas, a dupla se apegou. Antônio já batizou sua preferida de "Marisa" e confessa ter perdido o sono imaginando se ela passa bem. Nessas noites fundas, recorre à velha contagem de carneirinhos, tarefa na qual é craque: tem de repeti-la umas 20 vezes por dia. É mesmo de bocejar.

Findada a fieira das lamentações, Antônio e Laudelino são só doçura ao falar de suas 27 crias. "Ensinam a gente a ser paciente, né", diz um. "Pastor é a profissão mais antiga do mundo", gaba-se o outro, caçando confusão com outras categorias já em atividade na Idade da Pedra Polida. Verdade mesmo é que ambos sabem de detalhes desconhecidos para a maioria dos 20 mil curitibanos que circulam pelos 5,2 quilômetros de pista do Barigui.

Por exemplo: hoje, boa parte das ovelhas no parque está prenha, quase todas de Maguila, o macho polivalente que por conta de sua mania de dar coices mora numa quitinete do São Lourenço. O filme é conhecido. O valente só sai quando acionado pela administração municipal. O outro procriador, menos dado a barraco, é conhecido apenas pelo número, "427".

Em miúdos, a rotina de partos e problemas de ovário no aprisco é de desafiar obstetras. E ainda tem de ser polido a cada vez que os curiosos perguntam "como é que nasce?" Cá entre nós, quase ninguém conhece muita coisa sobre ovelhas. Só o que está na Bíblia.

"Como disse Jesus, elas co­­nhecem o pastor pela voz", ga­­rantem. "Sabem que é a gente pelo assobio." Os caras manjam. Nos dias de culto, um na Ad­­ven­­tista em Almirante Tamandaré, outro na Assembleia de Deus em Campo Magro, eles tiram de letra o sermão do pastor, aquele. Fosse eu, pedia a Antônio um so­­lo com assobio para o salmo 22 (ops, 23). E a Laudelino um do­­mingo no parque.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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