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 | Foto: Priscila Forone - Ilustração: Felipe Lima
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Conhecia dona Nair de ouvir falar. Me contaram que, quando ela não vai, o baile da terceira idade do Sesc da República Argentina fica mais chocho que quermesse em dia de chuva. Não que seja da trupe das senhorinhas que arredondam as saias aos primeiros acordes de "Fascinação". Do alto de seus 81 anos, cá entre nós, já lhe faltam canelas para tanto. E como ela mesmo diz, "sou viúva e não fica bem". O posto de Nair é o de poeta e cronista – "Nair de Araújo, a seu dispor".

Toda santa quarta-feira, por volta da sonolenta décima quinta hora, uma turminha, digamos, mais vivida, enche de som e fúria o salão do Sesc. Parecem colegiais de fanfarra. Alheia à turbamulta, a serena Nair repousa na mesinha de entrada 50 cópias de uma narrativa inédita – são páginas ao vento para os que chegam de salto alto ou de Vulcabrás. Ler os textos – assim dizem – é tão bom quanto deslizar pela pista ao som de "Dos Gardenias para ti, con ellas quiero decir, te quiero, te adoro, mi vida..."

Tem dias em que a veterana distribui não só crônicas, mas também versos. Nair é solene: se apruma e toma o microfone. Silêncio. Cerra as pálpebras e com a voz maviosa – empostada nos anos em que foi locutora das rádios Marumby e Santa Felicidade – declama alguns de seus maiores sucessos. Para mim, na tarde em que a conheci de verdade, reservou "Semelhante": "Quero partilhar contigo, a alegria que me enobrece, o prazer de ter amigos, conhecer-te me engrandece..."

Nair foi assim desde menina. Tinha lá seus 12 anos quando acordou poeta e cometeu as primeiras quadrinhas. "Magia, magia...", repete. Não havia, afinal, poetas na família. O pai – um ex-funcionário das Indústrias Matarazzo em Morretes – deixou o emprego para realizar seu sonho: abrir um botequim. A mãe era do lar. E Nair, a pequena, sem mais nem menos, deu de rimar amor e dor.

As colegas da Escola Rio Branco e do Instituto de Educação – onde estudou – ficaram mais empolgadas com a novidade do que com o beijo de Deborah Kerr em Burt Lancaster. A cada novo flerte imploravam que Nair lhes doasse uma poesia, "uma bobagem para impressionar um broto." Tiro e queda. Não tardaram a lhe creditar poderes do além: virou a Santo Antonio da Praça do Japão, local onde seu pai servia rabos-de-galo – soneto imperfeito de vermute com cachaça.

Reza a lenda que os versos de Nair casaram umas tantas normalistas, menos a si mesma, pelo menos até completar 36 anos e bater os olhos em Daniel na Praça Zacharias. Com ele teve dois filhos. Havia lá seus motivos para prolongar a solteirice. Um fora ter encontrado o modelo de sua vida – uma professora de nome Helena Kolody, a quem confidenciou poemas que derreteriam catedrais.

Não por menos, Nair tornou-se mestra como dona Helena e ganhou asas lecionando Português durante infinitos 45 anos. Trabalhou em escolas de Irati, Wenceslau Brás e Campo Largo. Deu aulas no Lysímaco e no Júlia Wanderley. Em tudo o que é canto lhe pediam para declamar – aniversários, casamentos, festas cívicas e religiosas. Sempre o ritual: aprumava-se, respirava e soltava a voz embriagante como meia-de-seda, a batida. Canudinhos de maionese descansavam em paz. Ficava para depois o Hino Nacional.

O neto Ramón, de 11 anos, descobriu há pouco os pendores poéticos da avó. "Vamos brincar de rima?", assalta-a, sem dó. Quando crescer, ele quer ser jogador de futebol. Mas como ainda é piá, verseja. A avó coxa-branca até que dá uma força ao craque, embora perca as estribeiras ao ver tantas faltas pela tevê. "Odeio guerra. Que diachos!" Mas respira fundo e desfila pela sala sua fala. "Não sou fanática. Torceria até para o Atlético se fosse para defender o Paraná." E há quem diga que a poesia está morta. A Nair é que não foi.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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