No final dos anos 1960, as moradoras da Casa da Estudante Universitária de Curitiba, a Ceuc, enfrentavam problemas às pencas a falta de verbas era tão dramática que acabou estampada nos jornais, como um verdadeiro caso de utilidade pública. Já com os pequenos problemas, as gurias se viravam do jeito que dava. Não era nenhum Vietnã.
Havia no pensionato, por exemplo, duas hóspedes de nome Palmira a Barbosa e a Amâncio da Silva. Dava confusão. Pois a mais miúda, de nariz adunco e cachos indomáveis, virou Palmirinha; a mais graúda, de cabelos de guri, Palmirona. E pé na jaca. O apelido de uma e de outra seria uma lembrança de veteranas que se reencontram em festas de bodas, não fosse um detalhe: impossível encontrar quem morou na Ceuc, de 1968 em diante, que não tenha ouvido falar das Palmiras.
Os detalhes são tão espetaculares que há, inclusive, quem as defina como "fantasmas escondidos no banheiro". Habitavam a mesma casa e se encontravam nos corredores. Ambas vinham de São Paulo a Barbosa, de Socorro; a Amâncio, de Marília. Estudavam na UFPR. Mas pertenciam a galáxias diferentes. A começar pelo andar em que dormiam. Palmirinha, estudante de Medicina, era do oitavo uma espécie de "piso das certinhas" e tinha o mais alto posto do pedaço, o de presidente da Ceuc. Palmirona, aluna de Economia, era do segundo, então uma "Sierra Maestra" reservada para esquerdistas. As recomendações para as novatas não faziam doce: "Cuidado com a turma do segundo andar".
Por infelicidade, o "caso das Palmiras" não figura no livro 1968 o ano que não terminou, de Zuenir Ventura. Bem merecia. Ideologias à parte, em 15 de junho daquele ano as moradoras deram uma trégua na guerrilha interna e organizaram um rastapé para angariar uns cruzeiros, ao som da banda Primatas. Dois dias depois, caiu o pano: enquanto as meninas almoçavam no RU, Palmirinha se atirou da janela de seu quarto, o 86. Nem Regina Duarte na cidade, filmando Lance Maior, causou tamanha comoção.
O suicídio da futura médica é cercado de silêncios. A casa passava por uma pindaíba subsaariana, havia motins de meninas reprovadas no teste de seleção, mas nada explica o bicho que deu. O tempo se encarregou de firmar lendas, supondo ter sido tudo culpa de algum amor perdido ou promovendo confusões grosseiras entre a biografia de Palmirinha e, claro, a de sua xará. Não, ela não foi empurrada lá de cima por algum agente da repressão, mas a turma do Dops bem que ciscou na área, alguns meses mais tarde, só que em busca da Palmirona. Aos fatos.
Em outubro de 1968, a militante Palmira Amâncio da Silva foi presa no encontro da União Nacional de Estudantes, a UNE, em Ibiúna, interior de São Paulo. Outras moradoras do Paraná tiveram a mesma desdita Ana Maria da Costa, Cecilia Sanchez de Cristo, Elizabeth Franco Fortes, Lore Meyer. Palmirona voltou para a capital, teve nova prisão decretada e, cão sem dono, bateu na porta de sua "Sierra Maestra" o segundo andar da Casa da Estudante, onde se escondeu.
As amigas lhe davam de comer e vigiavam o corredor, para que não fosse vista e denunciada. Em vão. Um dia a polícia chegou, sem finezas. Havia agentes armados até nas janelas dos prédios vizinhos. Palmirona se trancou num armário. À acadêmica de Letras Dilza Nunes Decker uma bela morena de Urussanga, SC coube a tarefa de passar uma conversa nas autoridades. Mentiu que se soubesse o paradeiro de Palmira, ora se não, ela mesma faria os merecidos alcaguetes.
Os meganhas, como se dizia, deram a ré e montaram tocaia do lado de fora. Do lado de dentro, para confundi-los, as aliadas criaram uma espécie de ruidoso rodízio no hall, local onde os meninos costumavam encontrar suas namoradinhas. Coube a Dilza maquiar a "procurada", de modo que parecesse um dos rapazes da alcova. À noitinha, ela e "ele" saíram de braço dado pela Rua General Carneiro, como dois apaixonados. Beijaram-se na boca, debaixo de todas aquelas armas. É uma das mais belas cenas dos "anos do chumbo". Palmirona se foi, numa Kombi branca, rumo à clandestinidade. Nunca mais se viram.
Epílogo
É provável que Dilza (foto), hoje advogada, tenha sido a última pessoa a falar com Palmirinha. E é uma das depositárias das histórias de tortura contadas por Palmirona nos dias de exílio no quarto 26 da Ceuc. "Teria sonhado?", já se perguntou. A jornalista Dinah Pinheiro Ribas, também moradora do segundo andar, garante que não: viu-a maquiando a revolucionária, para devolvê-la à vida. Impossível esquecer.
Palmirona teve seu nome ligado à Ação Popular Marxista-Leninista (APML), a mesma do Betinho. Vive em São Paulo.
EU E A CEUC NOS ANOS DE CHUMBO DA DITADURA MILITAR 1968 1971
*** Trechos de relato da advogada Dilza Nunes Decker sobre o período em que viveu na Casa da Estudante Universitária de Curitiba
[...]
MORAR NA CEUC: APROVADA NOVAMENTE EM SEGUNDA CHAMADA!
No final de abril, uma moradora (não me lembro quem) me abordou quando eu voltava da Faculdade para me dar um recado: a Palmirinha, então Presidente da CEUC, queria que eu fosse falar com ela, tal dia, tal hora. A reunião seria com alguns membros da Diretoria e com a Presidente do Conselho Consultivo.
Eu não mais pisara os pés na casa até então, embora estivesse mantendo contatos esporádicos com algumas moradoras, entre elas Joyce Damiani, Carmem Sílvia, Célia Dalossi, Clélia e algumas outras. Joyce, vinda também de Urussanga, já era minha amiga e devo a ela o fato de ter escolhido Curitiba para estudar e a CEUC para morar. Carmem Sílvia, vinda de Belém do Pará, tornou-se minha amiga em solidariedade à mesma circunstância que nos envolveu: o intenso frio de janeiro ao qual não estávamos acostumadas, já que éramos egressas de lugares com clima muito quente nessa época. Minhas colegas de curso, já moradoras da casa, nada sabiam a respeito de minhas penúrias...pelo menos era isso que eu imaginava!
Compareci na CEUC no dia e hora marcados. A recepção foi bastante amável, mesmo assim eu estava nervosa e tremia muito, pois tinha a intuição de que seria chamada para morar na casa, mas o medo de errar pela terceira vez sobrepujava a intuição. Mas não errei dessa vez: na reunião fui informada de que uma moradora fora embora definitivamente, uma vaga surgira e eu que, segundo Palmirinha, ficara em 41º lugar concurso (eram 40 vagas) estava sendo convocada para ocupar a vacância surgida, caso tivesse ainda interesse em morar lá (!!!).
Data para a mudança: 6 de maio, segunda-feira, pois o dia PRIMEIRO DE MAIO cairia numa quarta-feira, a maioria das moradoras iria emendar o feriadão e o expediente normal voltaria somente após o retorno de todas.
MEU ENCONTRO COM ROSINHA CASTRO
Feliz demais, com os sonhos se realizado em conta-gotas, abusei da sorte passei a frequentar o saguão de "meu agora futuro lar", à noite, véspera do feriadão de PRIMEIRO DE MAIO. O pessoal deixava eu ficar lá, pois para ir embora (para o quartinho de pensão) bastava atravessar a rua. Minha intenção era fazer companhia para as plantonistas. Na condição de caloura, eu já dera plantão e adiante falarei sobre isso.
Numa dessas noites, conheci Rosinha Castro. Era pequenina, tinha a tez morena, olhos grandes e levemente amendoados, um rosto lindo, e dona de um par de seios enormes para o tamanho dela, parecendo que não pertenciam àquele corpo aparentemente magro. Aparentemente, porque quando não usava um poncho de lã, vestia blusas largas de tricô, com golas altas que usava como capuz. E, invariavelmente, estava sempre calçada com botinas, compradas na feirinha hippie, essa ali do Largo da Ordem, que naquela época acontecia na Praça Ruy Barbosa. Rosinha era quartanista de Direito na UFPR. Pode parecer estranho, mas, quase todas as noites permaneciam no saguão apenas a plantonista, ela e eu.
Foi ela quem puxou a primeira conversa comigo. Queria saber quem eu era, de onde vim, o que fazia, onde morava, o que eu fazia na cidade, quem eram meus pais. O modo de perguntar era simples e a simpatia dela contagiava. Era inteligentíssima e muito culta. Mais tarde só vi uma mulher com idêntica cultura, pois falava como ela: a ex-deputada Federal Luíza Erundina.
Quando soube que eu era a nova caloura da casa, foi a primeira a me dar a notícia de que eu iria ocupar a vaga deixada no quarto 26, ou seja, eu iria morar no segundo andar da CEUC. A notícia em nada me abalou, foi absolutamente normal e acho que minha reação também foi normal.
Rosinha me perguntava o que eu achara da queda do Jango, como eu via o fato de os militares estarem governado o Brasil.
Naquela época, apesar de ler bastante, eu entendia muito pouco ou quase nada de política, não tinha conceitos definidos sobre o assunto, então, fui sincera com ela e disse que gostaria muito de entender tudo, que era um assunto que me interessava muito, mas que ninguém falava sobre isso no lugar de onde vim.
Falei que acompanhei a queda da Jango pelo rádio e a tomada do poder pelos militares, mas precisava entender melhor a causa de certos conflitos; que eu sabia que a situação política do Brasil era grave, porém, os livros que até então eu lera não me falavam do que eu precisava saber; que era mais provável que eu não estivesse lendo os livros certos; que o que eu ouvia no rádio e via na televisão não eram suficientes o bastante para eu entender as coisas como elas estavam realmente acontecendo, o que significava que minha noção sobre tudo era por demais precária, infelizmente...
Minha mais recente amiga notou meu interesse, minha avidez pelo conhecimento da situação e principalmente minha sinceridade. É óbvio que a sondagem tinha sido profunda.
Ela me ouvia com atenção e muito didaticamente ia me dando respostas um tanto lacônicas, mas verdadeiras. Isso entendi só mais tarde.
Quando sentiu firmeza em mim, começou a despejar tudo, em doses homeopáticas, talvez para testar minha reação. Primeira lição: o que era o imperialismo dos Estados Unidos e sua perniciosidade para com os países da América Latina e para com os demais países pobres do mundo. Exemplo: a Guerra do Vietnã, ainda em plena ebulição.
Depois, em detalhes: o porquê da Revolução Cubana. Aos poucos, então, eu ficava sabendo como foi e estratégia de Fidel Castro, na Sierra Maestra, para expulsar Fulgêncio Batista e os americanos de Cuba, quais os papéis de Che Guevara, de Raul Castro e de outros líderes da revolução. Era tudo para eu entender o que se passara no a Brasil e o porquê dos movimentos estudantis.
Depois, ela me fazia voltar no tempo e me falava sobre os grandes pensadores: Engels, Kant, Rousseau, Hegel, Nietzsche, Darwin e outros tantos de quem havia ouvido falar no meu curso de segundo grau, mas sobre os quais nada sabia. Também comecei a ter as primeiras noções sobre o capitalismo, o comunismo e o socialismo e a diferença entre um e outro. Para tanto, ouvi ainda as ideias de Lênin, Trotsky e Mao Tse-Tung e, para entender a ditadura brasileira e seus generais, precisei saber como agiram em seus países Stálin, Hitler, Franco, Salazar e Mussolini. Tudo isso em conversas seguidas, noites após noites, enquanto perdurou o feriadão.
Finalmente, fiquei sabendo, que a vaga que me fizera futura moradora da CEUC ficava no andar das moradoras "subversivas" da casa. E ela me explicou porque eram consideradas pelas demais moradoras o "pessoal barra pesada" do "Lar em Terra Estranha"!
[...]
MAIS AULAS COM ROSINHA E TROTSKY DENTRO DO PIANO
Com o passar do tempo continuei a tomar aulas de Política com minha professora. E novas lições iam aparecendo: Prestes e o PC, o movimento estudantil, a UNE, a ALN, o MR-8, os dois Carlos, o Lamarca e o Marighella, e outros tantos. Também tive o desprazer e senti não só asco, mas também medo quando fiquei sabendo o que representavam o CCC, a TFP, o DOPS, os informantes do regime militar presentes na UFPR, no trabalho, nas ruas ...
A partir daí, lia tudo quanto é livro que Rosinha me passava. Foi muita informação em muito pouco tempo e muita confusão ideológica, pois ainda era crua na matéria. Já sabia para onde estava indo, mas algumas coisa ainda me confundiam. O último livro que Rosinha me emprestou era sobre Trotsky. Ele ficou comigo até quando ela se foi e eu não cheguei a lê-lo inteiro. Tive que escondê-lo dentro do piano da CEUC, atrás daquela tampa grande que cobre os cabos dos pedais (era piano de armário). O livro ficou lá durante muito tempo, pois somente eu usava o piano depois que Rosalina voltara para a casa de seus pais.
Vale registrar outra história havida logo após o desaparecimento de Rosinha: eu não sabia o que fazer com os livros de Mag e outros de Rosinha. Assim, na primeira viagem que fiz para a casa de meus pais os levei para lá. Não me lembro como consegui realizar essa proeza, mas a verdade é que consegui.
Ao chegar lá, pus os livros dentro de uma mala que ficara encalhada na pequena loja de calçados de meu pai. Então a mala ficou na última divisória de uma estante do segundo compartimento da loja, nos fundos. Eu já sabia que meu pai estava vendendo a loja para meu cunhado ( marido de uma de minhas irmãs).
Numa outra viagem que fiz para Urussanga, fui até a loja para ver onde estavam os livros. Meu cunhado, com muita severidade e firmeza, sem deixar de me dizer umas poucas e boas como, por exemplo, que eu estava colocando a família em risco, que a coisa era muito séria e que eu não estava entendendo a gravidade do momento, blá, blá blá, me falou que ele, numa noite, os jogou no riacho que passava atrás do prédio onde ficava a loja. Eu não quis acreditar. Mas ele não estava mentindo.
O "meu Trotsky" teve destino mais romântico, acho...
[...]
A TRAGÉDIA DEPOIS DO BAILE
Ainda no dia 16, domingo, Célia Dalossi, a Diretora do Departamento Social ao qual eu pertencia e era secretária, me fez lembrar que na segunda-feira, sem falta, deveriam ser enviadas cartas de agradecimento às empresas, entidades e pessoas que cooperaram com a casa, através de doação de bebidas, salgadinhos, doces, guardanapos, empréstimo de copos e outros. As cartas já estavam prontas, só faltava a assinatura da presidente.
Segunda-feira, dia 17 de junho de 1968. Era perto do meio-dia, eu havia acabado de chegar da Faculdade e subi rapidamente ao quarto de Palmirinha, o quarto nº 86, para apanhar a assinatura dela nas cartas. Bati na porta e entrei. A presidente estava deitada de lado, com o dorso voltado para a porta. Quando eu falei a ela sobre o que me trouxera ali, levantou a cabeça e virou o rosto em direção a mim, apenas para me dizer, com uma voz muito arrastada, que eu a procurasse mais tarde.
Foi a primeira vez que entrei no quarto dela e o tempo em que lá permaneci foi curto demais, mas o suficiente para perceber que Palmirinha não estava bem, pois naquele momento não fora a Presidente da CEUC que havia me atendido: foi uma jovem triste, doente, fragilizada, envolta em um problema de um tamanho sem fim, que era só dela.
Desci pelas escadas, fui até o 5º andar, no quarto da Célia, para comunicá-la do fato. Ela não entendeu e eu tive que descrever a cena que vira há menos de cinco minutos. Discretíssima, mas em tom sério e lacônico, a Diretora do Departamento Social fez apenas um comentário: "De vez em quando ela fica assim... é triste... depois eu converso com ela... deixe as cartas comigo". Com toda certeza eu teria esquecido essas palavras, não fosse o que ocorreu duas horas depois.
Na época, todas as moradoras almoçavam na CEU Casa do Estudante Universitário, em decorrência de um acordo tácito celebrado entre as Diretorias das duas entidades, já que o RU não tinha mais o que oferecer aos estudantes. Na volta do almoço, vi a Tere, uma das moças que faziam a limpeza da casa, lavando os vidros do saguão, na parte externa que dá para a Conselheiro Araújo. Fiquei assustada tanto pela altura como pelo espaço, que a mim parecia pequeno, parei e perguntei: "Tere, não é perigoso? Você pode cair daí, menina!". Sorrindo, ela me respondeu que já estava acostumada.
Ao chegar no quarto, ainda dei uma olhadinha para baixo para ver a Tere. Era a primeira vez que eu via aquela cena e aquilo me impressionou. Resolvi me deitar um pouquinho (ainda estava desempregada). Não era raro acontecer batida de automóveis na esquina da General Carneiro com a Conselheiro Araújo, ou seja, bem embaixo dos quartos das moradoras. Também não era raro uma ou outra moradora, em desobediência ao Regimento Interno da casa, deixar sua toalha de banho pendurada na janela. Isso, obviamente, fazia com que de vez em quando uma toalha, sucumbindo ao frescor da brisa, fosse parar na rua, traindo sua dona, porque todas as roupas eram marcadas com o número de cada moradora para não haver confusão na lavanderia.
Então, naquele dia 17 de junho, quando acabara de me deitar, vi, de repente algo grande passando na última janela (da esquerda para a direita) do quarto. Simultaneamente, ouvi barulho de vidros quebrando lá embaixo e outros barulhos que não soube identificar. Pulei da cama, fui olhar com a certeza absoluta de que se tratava de uma toalha caindo e, concomitantemente, dois automóveis colidindo na esquina.
Entretanto, entre o sair da cama e o chegar à janela, a cena com a Tere me veio à cabeça numa fração de segundos. Olhei novamente para onde ela estava e o que vi foi terrível: um corpo estatelado no chão, com uma perna esticada, outra dobrada e em seguida se esticando; um braço caindo sobre o corpo caído e o outro esticando-se para o lado direito. "Tere!!", gritei. Só que, em seguida, o rosto, que estava virado para cima, virou para o lado direito em direção ao braço esticado. O meu quarto ficava apenas no 2º andar. Noutra fração de segundos, o nariz visivelmente adunco e o jeito dos cabelos (aloirados, crespíssimos e levemente armados) se juntaram à cena que eu vira às 11:30h e ao comentário de Célia, revelando-me imediatamente de quem se tratava: era a Palmirinha!!!
É incrível, mas a ânsia de vômito que me deu em seguida, o calor insuportável no corpo todo (estávamos em pleno inverno!) e um mal-estar jamais sentido antes me deixaram grudada à janela, sem forças para qualquer coisa. Uma das meninas (que penso ter sido a Maria Ivete) estava no quarto comigo e ouviu quando soltei novo grito " É a Palmirinha!". Veio até a janela, saiu correndo do quarto e eu permaneci ali, imóvel, estupefata, vendo inclusive as primeiras pessoas se aproximando do corpo... depois outras... depois muitas... depois, a ambulância, a Polícia, depois...
Foi terrível. No dia seguinte a manchete estava em todos os jornais. Antes desse fato, estava sendo travada uma batalha terrível entre a Diretoria (leia-se Palmirinha) da casa e uma das moradoras. O motivo era a forma como outra estudante conseguira entrar na casa, fora dos padrões estabelecidos. Como tinha relativo acesso aos meios de comunicação, a moça denunciou o fato à imprensa. A batalha chegou aos jornais de forma bastante frequente. A direção da casa estava se aborrecendo muito com a história, a Palmirinha, principalmente. Então, a manchete estampada em todos os jornais do dia 18 de junho de 1968 causou um certo impacto na sociedade. Parecia que tudo tinha acontecido em decorrência de briga interna entre moradoras.
Palmirinha, ex-quintanista do curso de Medicina na UFPR, foi velada no saguão da CEUC até às 23:00h daquele dia, quando dois ônibus completamente lotados de estudantes um com seus colegas de turma e outro com as colegas da casa , cedidos pela UFPR, levaram seu corpo para sua cidade natal, Socorro, no Estado de São Paulo. Eu fui ao sepultamento. Lá conhecemos a mãe dela e o irmão. Toda a cidade de Socorro estava presente. Foi um acontecimento profundamente triste, chocante, inusitado...
Os dias seguintes foram taciturnos, de muito medo, muita insegurança, muita tensão, de perplexidade que não tinha fim...
[...]
INÍCIO DE 1969: A CHEGADA DA ONY E A VOLTA DA PALMIRONA
Chegou o ano de 1969. Continuávamos sem saber de Palmirona. É bom que se registre o seguinte: as moradoras que faziam militância política eram pouco vistas na casa. Elas estudavam, algumas trabalhavam fora e ainda tinham os seus compromissos com os movimentos de esquerda. Eram muitas reuniões de que tinham que participar, a panfletagem era realizada pelos próprios militantes, havia ainda os contatos, estudos, viagens. A realidade é que elas apareciam muito pouco na casa e quando isso ocorria, o que se via era muita pressa, mas também muita discrição!
Apesar de tudo o que Rosinha me ensinou, ela nunca me falou claramente qual era o papel dela. Sei apenas que ela era importante no grupo, pois recebia inúmeros recados, sempre pessoalmente e de forma muito discreta. Fazia a Faculdade de Direito, sei que freqüentava o curso, mas também desaparecia de vez em quando por alguns dias e voltava como se nada tivesse havido.
Palmirona era uma figura interessante: estatura média, gorda, cabelos sempre bem curtinhos, invariavelmente usando calça jeans, jaqueta, bolsa a tiracolo rústica e botinas iguais às de Rosinha (geralmente adquiridas na feirinha hippie). Tinha o semblante muito sério e quase não olhava para nós, as moradoras novas. Se a flagrávamos sorrindo, alegre, era sempre com alguém da "tchurma", com quem se dava muito bem. Quase não a víamos. Comentava-se inclusive que ela estava presa, mas ninguém tinha certeza de nada. Passou o mês de novembro e em seguida vieram as férias.
As vestibulandas para o ano de 1969 começaram a aparecer em janeiro. A Ony foi uma das primeiras e a mandaram para o meu quarto, onde surgiram duas vagas, em decorrência de a Mag e a Maria Ivete terem concluído seus cursos. Ony e eu ficamos muito amigas de verdade e ela também ficou amiga de Rosinha. Essa história será contada adiante...
Voltando à Palmirona: um dia, sem mais nem menos, Rosinha chegou e falou para mim e para Ony que Palmirona estava voltando, na clandestinidade, e que iria ficar escondida em nosso quarto. Ony já sabia sobre a casa e de suas moradoras tanto quanto eu, e nós sabíamos que podíamos confiar em Rosinha. A partir dali, portanto, nosso quarto ficaria com a porta trancada com chave.
Palmirona chegou não sei como e nem iria querer saber e alojou-se na cama do meio. É óbvio que ela fora devidamente alertada de que poderia confiar em mim e na Ony. Primeiro, um bom banho, pois a hora era ideal: as meninas costumavam tomar seus banhos pela manhã ou à noite. Depois um excelente sono, até altas horas. Nós fazíamos vigília para estarmos presentes na hora em que ela acordasse. Quando ela acordou, um apetitoso lanche a esperava.
Não lembro quantos dias Palmirona ficou em nosso quarto. Ela se deu bem com nós duas e isso resultava bons papos, até para distraí-la, já que não era prudente ela sair do quarto. Nesses papos, Palmirona contou muita coisa para a gente, principalmente sobre o que ela sabia sobre torturas. Também nos contou sobre as torturas que sofreu. Detalhes quanto às torturas, mas nada sobre prisão. A vigília permanecia...
Rosinha ficava a maior parte do tempo fora, acho que para, com outras pessoas, resolver aquela situação antes que fosse tarde demais. Elas sabiam de tudo, o Decreto-lei 477 estava no forno... As coisas estavam mais fáceis apenas porque a maioria das moradoras tinha viajado. Mesmo assim, havia as que não viajavam ou deixavam para viajar mais tarde. Portanto, todo cuidado era pouco!
As refeições que levavam para Palmirona, ela as comia sobre a cama em que dormia, ouvindo uma coleção de música erudita que eu tinha em discos de vinil. Eu tinha muito cuidado com os meus discos; comprara todos enquanto professora na minha cidade e sabia que tão breve não iria poder comprar outros, pois continuava desempregada. Ela tirava os discos das capas, ouvia a música que queria, colocava um disco sobre o outro sem capa, e deixava cair comida sobre eles. Eu queria morrer! Mas era o jeito dela e eu tinha que aprender a conviver com isso. Já havia uma certa liberdade entre nós e em nome dessa liberdade eu tentava chamar a atenção dela para o que estava fazendo com os meus discos. Ela ria, não dava bola e me chamava de "fresca". Tudo numa boa...
Também era muito teimosa. Ao menor descuido, dava uma saidinha discreta. Ainda bem que o descuido era raro. Nós ficávamos desesperadas e, ao tentarmos alertá-la do perigo, ela respondia que não entendíamos nada, que precisava sair, que éramos amadoras no assunto, blá, blá, blá... E nós ficávamos no quarto, pisando em brasa até ela voltar! A essa altura, muita gente já sabia que ela estava na casa...
Um dia, a bomba: a DOPS descobrira que ela estava lá e os policiais estavam fechando o cerco, eis que escondidos nas redondezas do prédio da CEUC! Não estavam tão escondidos assim, pois, onde quer que estivéssemos, dentro ou fora do prédio, dava para ver cada um deles de arma em punho na platibanda do Hospital de Clínicas. E em outros prédios da redondeza. Todo mundo em polvorosa! A CEUC estava quase que absolutamente vazia, pelas férias e por causa das moradoras que já haviam voltado para suas cidades em razão da conclusão de seus cursos (naquela época as formaturas eram em dezembro!). Muitos quartos com os três armários abertos, as portas também abertas, anunciando que ali surgiam vagas para novas moradoras.
Quem ficava na casa em época de férias era somente por esses motivos: ou porque trabalhava e não podia deixar o trabalho, ou porque tinha ficado para segunda época nos exames finais e precisava permanecer na casa para estudar e passar, ou porque era sextanista de Medicina e precisava fazer residência, ou porque estava desempregada (como eu!) e não tinha dinheiro para viajar, ou, então, porque era vestibulanda!
Foi isso que salvou Palmirona. Quase não havia membros da Diretoria, mas as que lá estavam colaboraram. Ela foi escondida no armário do meio de um quarto vazio no 7.º andar, onde havia mais de um quarto nessa condição. Eu fui designada para ficar no saguão e receber qualquer policial, desde que ele não tentasse invadir a casa à força.
Eles chegaram liderados por um tal de Delegado Abílio. Era "Delegado Calça Curta", jamais irei esquecer a cara do meganha. Não muito gentil, disse que precisava entrar na casa para encontrar a Palmirona, alertando sobre o perigo que cada uma corria se estivesse escondendo alguma "subversiva" ali dentro.
Ensaiando muita serenidade, coloquei todo o "recinto" à disposição dele, não sem antes contar como é que a casa funcionava, como eram os quartos e quais as principais regras: "as moradoras que estavam em férias levavam suas chaves, pois deixavam seus pertences nos armários; as que tinham saído da casa devolviam as chaves e as roupas de cama e banho para a Diretoria, sendo que os armários deveriam ficar abertos até que nova moradora viesse ocupar a vaga".
Ao perguntar se eu tinha conhecimento do paradeiro de Palmirona, minha resposta foi taxativa: eu não a conhecia direito, pois a vira poucas vezes, e a notícia que corria internamente é que ela tinha sido presa num "congresso subversivo de estudantes". Com essa, senti que ganhei o cara. Todas as meninas que estavam no saguão da casa estavam fazendo cena: olhos arregalados, assustadas, imóveis, todo mundo com cara de anjo assustado, olhando para o policial. As orientações vinham de cima...
A Presidente da casa, Célia Maria, que estava no trabalho e fora alertada da situação, chegou quando o delegado ainda estava ali. Expliquei a ela tudo o que já tinha dito para o policial e subimos com ele, de quarto em quarto, banheiro em banheiro, para a busca. A serenidade fazia parte da cena, mas estávamos todas com o coração nas mãos. E como tinha carro da DOPS lá fora!
Ao chegar no sétimo andar tudo combinado o quarto estava com uma cama arrumada, a que ficava ao lado da janela, com todo o jeito de que havia moradora ali, um armário fechado, duas camas somente com seus colchões e dois armários abertos. A porta estava fechada mas não estava trancada. Nesse momento, alguém, em qualquer lugar da casa, gritou: "Na casa de máquinas!!". E houve um barulho de vozes confusas, de passos fortes, de gente na escadaria: eram outros policiais subindo pelas escadas. O Delegado Abílio designou outros policiais para irem nos quartos que faltavam ser revistados, seguiu os demais policiais e Palmira desceu para o quarto onde sempre estivera desde que voltara. Ele não revistou o quarto do 7º andar, o quarto 73!!
Depois, foi uma loucura: os policiais desceram, uns pela escadaria, outros pelo elevador (um deles ficara cuidando dos dois elevadores, pois ninguém tinha ordem para subir), houve um diz-que-diz no sentido de que alguém viu Palmirona indo em direção à Reitoria, a casa ficou vazia em pouco tempo, depois de muita balbúrdia. Quanto sufoco!!!
A DOPS continuou rondando a casa naquele dia. Para onde quer que a gente olhasse, havia um tira, inclusive noutros prédios. Tinha ficado a ordem para deixarmos todas as cortinas abertas, inclusive durante à noite.
Não dava mais para perder tempo. Havia o perigo da delação. Então, tudo combinado, o plano iria ser implementado. Alguém conseguiu fazer chegar na casa um terno completo que coubesse na Palmirona. À noite, o saguão ficava cheio, pois era a hora de os namorados irem buscar suas namoradas. Nunca vi tantos "namorados" como naquela noite!
Eu ficaria sentada em um dos sofás dos saguão, de costas para o Hospital das Clínicas, ao lado de um moço vestido de terno. Nós deveríamos agir como se fôssemos namorados. Foi o que aconteceu. Não me lembro do jovem, mas sei que não era conhecido meu. Não havia necessidade de carícias, porque o regulamento não permitia que as meninas ficassem se amassando com os namorados no saguão. No máximo, mãos dadas.
Lá pelas tantas, o rapaz saiu e foi ao banheiro do saguão. Demorou um pouco e voltou. Só que quem voltou não foi ele, foi Palmirona. Estava vestida como o rapaz. Como Palmirona chegou à recepção, se foi pelas escadas, se foi pelos elevadores, nunca fiquei sabendo. Provavelmente ela entrou agachada no saguão. O que sei é que o terno estava no banheiro, esperando por ela.
Sentou-se ao meu lado e me explicou. Havia uma Kombi branca lá fora, estava parada há tempo, o rapaz que estava antes ao meu lado é que seria o motorista. Alguém daria sinal a ela, nós duas deveríamos sair de mãos dadas e ir até a Kombi. O motorista também sairia com uma mulher, ou seja, dois casais sairiam, ficariam um tempinho lá fora, conversando, depois iriam em direção à Kombi, cada casal deveria se despedir com um abraço e um beijinho na boca e... Tchau!!!
Deu tudo certo. Certíssimo. Nunca mais vi Palmirona. Entretanto, esteja ela onde estiver, irá se lembrar de tudo isso, com certeza. As pessoas que contribuíram para sua fuga, também...
[...]
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