E eis que, num surto de "pronto, falei", uma guria levantou a mão e disse o que pensava: "Sabe qual é o problema, esse Dorival Caymmi fala muito de mar, de mulher, de dengo, de comida..." Colheu como resposta uma gargalhada de Milton Karam, o regente. Estava aberta a temporada 2014 do Coral Brasileirinho. Aos fatos.
Neste ano se comemora o centenário de nascimento do compositor baiano. Tempo de cantar Caymmi, no banheiro e na esquina. Vale assobiar. O Brasileirinho não poderia deixar barato. Mas ao ser convocado à farra, alô-alô, ninguém disse palavra: apenas 5% da piazada tinha ouvido falar do sujeito que nos deu Peguei um Ita no Norte. A empolgação foi alguns graus abaixo da sentida diante do próximo Jogos vorazes. O paladar do artista por temperos fortes, associada à câmera lenta com que mira as morenas Rosa, pareciam lerdeza demais para aquela turminha nascida para clicar.
No fim, prevaleceu a moralidade estética. Meses depois de um intensivão de Caymmi, as 27 crianças e adolescentes do Brasileirinho estão entregues ao balanço da rede, à espera de um vatapá de preferência servido na boca. Só faltam pedir cafuné. Possuídos por Dorival, quase levam às raias da loucura os diretores do grupo, o arquiteto, músico e compositor Milton Karam, 53 anos; e a musicista Helena Bel Carollo, 43 anos, que estão nos nervos, como que tocando repiques numa fanfarra de colégio: daqui a uma semana, começam os shows do grupo, no MON.
Resta-lhes pedir socorro aos deuses da música. Às cenas do ensaio do grupo: Joaquim, que em outras eras integraria fácil-fácil os Canarinhos de Petrópolis, reivindica: "Ô, Milton, não tem lugar para mim no palco..." O guri faz o papel de encabulado chamego de Maria Amélia na deliciosa canção Eu cheguei lá. Bate-se com a tarefa de interpretar. Karam se ajoelha para explicar a cena outra vez para os brasileirinhos, como os chama. O número ganha trilhos.
De repente, um pedacinho do céu a contraltina Lívia, 10 anos, entra em cena com Eu não tenho onde morar. Bate forte vê-la ali, grãozinho de areia, atirando sua voz afinada pelos dez janelões de madeira do casarão onde funciona o Conservatório de MPB, na Mateus Leme. A gente se sente numa redução jesuítica do século 17, entregue aos mistérios da existência da alma. Bonito.
A apoteose é seguida de aplausos espontâneos. Mas dura um tico. O número encerra com gritinhos, dando início ao que mais parece a hora do recreio de 1,5 mil alunos nutridos pelo mais energizado dos achocolatados Toddy 5.0. Há quem aproveite o intervalo entre uma canção e outra para brincar de garupa, há quem troque segredos no ouvido das amigas bem-vindos à Brotolândia. As marcações do chão vão para as cucuias. Mil e Bel, como são chamados pela trupe, passam uma carraspana peso pena. "Pô, gente..." Riem. No fim dá tudo certo. Tem sido assim nos últimos 21 anos.
Milton nasceu de uma família libanesa que adotou o Brasil sem reservas. Na casa dos Karam, pai e filhos tocavam samba. Com a chegada da sobrinhada 12 no total , nosso amigo começou a compor para a petizada. Por essa época, na década de 1980, conheceu o grupo musical O Abominável Sebastião das Neves, dado a performances e do qual fazia parte, vejam só, Helena Bel. Gostou. Inspirado, desenvolveu com Raul Lacerda e, depois, com Simone Cit, o coral infantil O Caracol. O Brasileirinho nasceria em 1993 fazendo parecer fácil o que é difícil pacas: cantar, dançar e interpretar com a naturalidade de quem brinca na gangorra.
Quem viu e ouviu sabe como é o grupo faz gregos e baianos caírem de amores. Os grandes costumam deixar dois tipos de depoimento para a dupla Mil & Bel: gostariam de ter cantado num coral assim; e, tivessem um filho, fariam de tudo para que fosse brasileirinho. Muitos vão à fila da audição, todo ano, pedir uma vaga para a prole. São em média 100 candidatos a cada novo teste.
Se entrar é difícil, pior é sair. Por volta dos 14, 15 anos chega a hora de abrir mão da vaga. Chororô. Por sugestão de um pai, criou-se um rito de passagem. O integrante que se despede coloca-se atrás de uma cadeira e pede ao recém-chegado que ali se sente. Pronto. O novato se vê entronizado na Academia Brasileirinho de MPB. Vai ficar no posto por uns tempos, dando oxigênio à obra de Adoniran, Vinícius, Jobim, Guinga e o que mais. Suspeito que ali começam os melhores anos do resto de suas vidas.
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