Viro um passarinho quando dona Hedwiges Miserkowski telefona. Roubo versos para defini-la. Digo que ela morre ontem e nasce amanhã. Que seu tempo é quando. Que vive ali, na Engenheiros Rebouças, mas que mora mesmo é na tela de um pintor.
Da última vez que falamos, me convidou para ir a seu aniversário de 100 anos. Disse "100", número que parece de mentirinha, como se contasse tomates na feira. "Você vem?" Afogado em números, mal respondi.
Quando Getúlio Vargas tomou o poder, em 1930, Hedwiges, a Iadja, tinha 21 anos, e era a garota mais disputada dos salões do Juventus. Em 1954, ano em que Vargas saiu da vida para entrar na História, cuidava de seus dois Guerinos o marido e o filho e trabalhava feito uma Maria-Fumaça na RFFSA. No infinito 1968 com o pau comendo e o AI-5 estava aposentada, sem um pingo de medo dos comunistas. E curtia a idade do tricô e das compotas enquanto 90 milhões em ação comemoravam a Copa de 70.
As páginas do século 20 passeiam pelo álbum de retratos de Hedwiges. "Que homem nojento aquele Hitler", esbraveja, como se fosse eu um seu vizinho do Capanema, numa tarde fria de 1941, ao saber que na mercearia faltava do arroz ao açúcar à farinha. Mas deixa a guerra quieta. De tudo, o que não esquece é da gripe espanhola, vista na soleira da porta, num distante 1918. Era menina de 9 anos, só falava polonês e morava na 13 de Maio. Suas memórias, um cortejo: "Meus tios ajudavam a abrir covas à noite. Para não assustar o povo, os sinos da Igreja do Rosário não tocavam mais. Sentadinha na porta de casa, eu assistia às famílias levando os caixões, mãe e filho juntos". Passos no Largo da Ordem.
Sei não, mas a garota de olhos azuis-azuis deu um troco aos dias cinzentos da infância. Primeiro, jurou que ia durar 104 anos. Depois, riu muito e dançou tanto que quase esqueceu de casar. Ao trocar alianças, era uma balzaquiana e já guardava um mistério que faria romancistas se atirarem a seus pés.
O mistério não é mais segredo. Hedwiges é "A Polaca", modelo da tela famosa do italiano Guido Viaro, com quem viveu um interlúdio na década de 30. "Tudo por causa do meu nariz", gargalha, ao relembrar a desculpa dada pelo artista para retratá-la. Ele queria namoro. Ela disse não.
Guido ficou com Yolanda e nunca mais encontrou a moça. Pelo menos até o ano passado, quando a espiritualista Hedwiges sonhou com o pintor e veja só como são as gurias se apaixonou feito uma aluninha do Sacre-Coeur. Morto em 1971, Viaro não tem como declarar suas intenções. Mas a noiva centenária garante sentir a presença dele pela sala.
A paixão virtual um Second Life com naftalina tem sido tão boa que Iadja até remoçou. Diz que o século não teve muita graça, mas os últimos tempos valeram a espera. Constantino e Vânia Viaro, filho e nora de Guido, se tornaram uma segunda família. E por pouco curiosos não formam fila para conhecer a "amada imortal". Só comemorações de aniversário, foram quatro. "É festa de polaco", avisa a mulher mais feliz do Rebouças ao Atuba.
Chegou aos 100 com 64 quilos e amando muito. Ainda se emociona quando ouve Frank Sinatra cantar "My Way". Só vez em quando diz "ai minha perna". Tem Dramin B-6 à mão. Exige ser chamada de "você". Senhora é sua mãe.
Ao pé do ouvido, confessa que vida longa "às vezes cansa". Mas dá conselho para as mais novas, de 70-80 anos: comam pouquinho, tomem mingau de aveia e não percam tempo com novela. Só vê Caras e Bocas. "Adoro aquele macaco". Ela ri do que diz e deixa cair o lencinho branco sobre a sapatilha dourada. Como num romance.
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