| Foto: Foto: Daniel Derevecki /Ilustração: Felipe Lima

Viro um passarinho quan­­do dona Hedwiges Mi­­serkowski telefona. Rou­­bo versos para defini-la. Digo que ela morre ontem e nasce amanhã. Que seu tempo é quando. Que vive ali, na Enge­­nheiros Rebouças, mas que mora mesmo é na tela de um pintor.

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Da última vez que falamos, me convidou para ir a seu aniversário – de 100 anos. Disse "100", nú­­mero que parece de mentirinha, como se contasse tomates na feira. "Você vem?" Afogado em números, mal respondi.

Quando Getúlio Vargas to­­mou o poder, em 1930, Hedwi­­ges, a Iadja, tinha 21 anos, e era a garota mais disputada dos salões do Juventus. Em 1954, ano em que Vargas saiu da vida para en­­trar na História, cuidava de seus dois Gue­­rinos – o marido e o fi­­lho – e trabalhava feito uma Ma­­­­ria-Fu­­maça na RFFSA. No infinito 1968 – com o pau comendo e o AI-5 – estava aposentada, sem um pin­­go de medo dos comunistas. E curtia a idade do tricô e das compotas enquanto 90 milhões em ação comemoravam a Copa de 70.

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As páginas do século 20 passeiam pelo álbum de retratos de Hedwiges. "Que homem nojento aquele Hitler", esbraveja, como se fosse eu um seu vizinho do Ca­­panema, numa tarde fria de 1941, ao saber que na mercearia faltava do arroz ao açúcar à farinha. Mas deixa a guerra quieta. De tudo, o que não esquece é da gripe espanhola, vista na soleira da porta, num distante 1918. Era menina de 9 anos, só falava polonês e morava na 13 de Maio. Suas memórias, um cortejo: "Meus tios ajudavam a abrir covas à noite. Para não assustar o povo, os sinos da Igreja do Rosário não tocavam mais. Sentadinha na porta de casa, eu assistia às famílias levando os caixões, mãe e filho juntos". Passos no Largo da Ordem.

Sei não, mas a garota de olhos azuis-azuis deu um troco aos dias cinzentos da infância. Pri­­mei­­ro, jurou que ia durar 104 anos. Depois, riu muito e dançou tanto que quase esqueceu de casar. Ao trocar alianças, era uma balzaquiana e já guardava um mistério que faria romancistas se atirarem a seus pés.

O mistério não é mais segredo. Hedwiges é "A Polaca", modelo da tela famosa do italiano Guido Viaro, com quem viveu um interlúdio na década de 30. "Tudo por causa do meu nariz", gargalha, ao relembrar a desculpa dada pe­­lo artista para retratá-la. Ele queria namoro. Ela disse não.

Guido ficou com Yolanda e nunca mais encontrou a moça. Pelo menos até o ano passado, quando a espiritualista Hedwi­­ges sonhou com o pintor e – ve­­ja só como são as gurias – se apai­­xo­­nou feito uma aluninha do Sacre-Coeur. Morto em 1971, Viaro não tem como declarar suas in­­tenções. Mas a noiva centenária garante sentir a presença dele pela sala.

A paixão virtual – um Second Life com naftalina – tem sido tão boa que Iadja até remoçou. Diz que o século não teve muita graça, mas os últimos tempos valeram a espera. Constantino e Vâ­­nia Viaro, filho e nora de Guido, se tornaram uma segunda família. E por pouco curiosos não formam fila para conhecer a "amada imortal". Só comemorações de aniversário, foram quatro. "É festa de polaco", avisa a mulher mais feliz do Rebouças ao Atuba.

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Chegou aos 100 com 64 quilos e amando muito. Ainda se emociona quando ouve Frank Sinatra cantar "My Way". Só vez em quando diz "ai minha perna". Tem Dra­­min B-6 à mão. Exige ser chamada de "você". Senhora é sua mãe.

Ao pé do ouvido, confessa que vida longa "às vezes cansa". Mas dá conselho para as mais novas, de 70-80 anos: comam pouquinho, tomem mingau de aveia e não percam tempo com novela. Só vê Caras e Bocas. "Adoro aquele macaco". Ela ri do que diz e deixa cair o lencinho branco sobre a sapatilha dourada. Como num romance.