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 | Foto: Henry Milléo – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Henry Milléo – Arte: Felipe Lima

Li certa vez que nossas lembranças anteriores aos 5 anos de idade não passam de fantasias. O que julgamos "memória boa", "fotográfica", seriam, na verdade, construções mentais. Funcionam como um jogo de montar: nada mais fazemos do que erguer castelos com as recordações que os mais velhos contam a nosso respeito.

Encantados com o que ouvimos, repetimos – tantas vezes que ficamos craques. O filme do passado se aperfeiçoa a cada narrativa. Vira um cinemascope. Mal lembramos que, "naquele tempo", ainda sujávamos as fraldas e achávamos o sacolé uma delícia. Pouco importa. A memória tem regras próprias. Mais do que o acontecido, importa o sentido do que aconteceu. O mecanismo serve tanto para uma simples viagem a Matinhos quanto para uma tragédia pessoal.

Assim se dá com José Waldomiro Teixeira, o Miro, 54 anos. Ouvi-lo é o que há. Ele conta que tinha 1 ano e 3 meses quando, numa manhã, não conseguiu levantar da cama. Nada se mexia do pescoço para baixo. Chorou. Era poliomielite, a paralisia infantil. Se bem lhe informaram, a essa altura já aprendia a tirar leite da vaca na fazenda onde vivia com a família, em Jacarezinho, Norte Pioneiro. Em alguns anos, ajudaria na colheita de café, qual os outros, mas que nada.

Miro passou a se arrastar pelo chão, para desespero de Efigênia, sua mãe. Se os pais iam com ele à cidade, logo aparecia alguém para lhe oferecer uns trocos, com pena. Desgostava daquilo. Tinha a impressão de que todos o olhavam, sentimento ruim que o acompanhou por quase toda a vida, hoje curado.

Alegria mesmo, só se estivesse em companhia do irmão José Aparecido. Sujeito pimpão e jeitoso, futuro torneiro-mecânico, Zé arrumou umas tábuas, martelou um caixote com rodas, e deu de puxar o mano cafezais adentro. Divertiam-se com os cavalinhos de pau. À noite, punha-o nas costas e o levava a uma roça ali perto, cujo dono, mais afortunado, tinha televisor em casa. Viam novela espiando da janela. "Televizinhos", dizia-se. Cena de chorar.

Fosse um livro, esse seria o primeiro capítulo. O segundo começa quando Miro virou interno na Associação Paranaense de Reabilitação (APR), na Avenida Iguaçu. Certa feita, levaram a gurizada que lá morava para desenhar no Largo da Ordem. O guri se esmerou ao ver o rolo de papel estendido nos paralelepípedos. Retratou três jogadores do Coxa. Conquistou admiradores. Em vez de ganhar olhares de dó, passou a ganhar caixas e caixas de lápis de cor, das quais nunca mais se separou. Chamavam-no de Miro, "o desenhista".

O terceiro capítulo começa com ele já moço feito, mas enfurnado na casa da família, agora na Vila Oficinas. Era 1979. Nenhum horizonte. Até que uma Kombi da APR estaciona na frente, os assistentes sociais descem e lhe oferecem um emprego no governo do estado. Simples assim. Vai ser ascensorista, recepcionista, contínuo, gráfico, o que lhe pedirem nas repartições. "Topa?"

Bons ventos. Vence os complexos. Torna-se "bagunceiro", como diz, com voz rascante, do alto de seu 1,5 metro, sobre os anos em que estagiou na boemia. Conhece Regina, a professora. "Ela é quem correu atrás de mim." Tornam-se os pais de Vanessa, uma família de Campo Magro, na região metropolitana. Por lá todos conhecem o Miro – o cara do quadriciclo motorizado, que passeia pelas trilhas, todo santo dia, como nos idos em que era puxado num carrinho pelo irmão José.

Não finda a história aqui. Quarto capítulo. No serviço, desde o início, em vez de lhe perguntarem "paralisia infantil?", os colegas dizem: "Ah, você é artista..." Querem saber por que desenha tanta mulher pelada [risos], figuras metade homem, metade bicho – cobras que viram gente; Cristos e mais Cristos que, se olhando bem, são o próprio Miro, de barbas. Cavalos. E as paisagens? "São lugares aonde iria, se pudesse..."

Meio que sem querer, revela que os desenhos são suas memórias em lápis de cor. Não à toa, muitas dessas conversas terminam com alguém sacando uma fotografia da bolsa, pedindo uma reprodução, sem compromisso. Não nega. Em horinhas de folga, reinventa retratos amarelados. Combina traços firmes com tons alegres, como a vida bem lhe ensinou a fazer.

PS: A crítica de arte Maria Cecília Noronha colocou Miro no panteão dos naïfs paranaenses. As obras dele estão expostas no Paraná Previdência (antigo IPE), Rua Inácio Lustosa, 700.

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