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José Carlos Fernandes

O livro da vida de Noemi Francisco

 | Felipe Lima
(Foto: Felipe Lima)

Cá entre nós, o Livro de Rute, na Bíblia, bem merecia um bocadinho mais de ibope. É um achado, um elogio à cumplicidade, uma inspiração nas horas de infortúnio, amém. Sem falar no enredo dos deuses. De tão elevado, chega a ser engraçado.

À graça. Sogra e nora estão a um passo da eternidade: querem tirar as diferenças num bangue-bangue do Sergio Leone. Tem as que saem no tapa e as que juram vingança aos santos clamar. Não é o caso da sogra Noemi e da nora Rute. Essas duas verdadeiras civilizadoras do Mundo Antigo só não tomaram juntas o chá das cinco porque faltava glamour na redondeza.

O trecho do livro do qual mais gosto é aquele em que Noemi – cujo nome significa "doçura" – pede para ser chamada de Mara – equivalente a "amargura". Pudera. Perdera o marido e os filhos, ficaram-lhe as noras – que dispensa sem cerimônia, como era de se esperar. A nora Orfa se escafede. Rute lhe gruda na barra da saia – o resto é que nem filme: não pode contar.

Acho curioso que essa história tenha inspirado tantas mães a batizar suas filhas de Mara e não de Noemi, o que reduziria a carga horária de sofrimento da humanidade. Deixe quieto. Por esses dias, finalmente conheci uma Noemi, digna de figurar nas Escrituras, a Noemi Francisco da Costa, 37 anos, moradora do Jardim Weisópolis, em Pinhais. É estudante do terceiro ano de Pedagogia na Facinter. E gari das 7 da matina às 3 da tarde.

Noemi veio parar por aqui ainda guria, quando a mãe saiu de Iporã, no Norte do Paraná, para se tratar nas Clínicas. Foi matriculada na Escola Municipal Irati, no Conjunto Mercúrio, Cajuru, e gostou do que viu: uma biblioteca. Bastou para que saracoteasse todo santo dia 40 minutos a pé para assistir às aulas. Era uma boa aluna. Chegou a passar em Contabilidade na Escola Técnica da UFPR, mas o mundo não se mostrou muito camarada com ela.

Na adolescência, entre um emprego de balconista aqui e de caixa de supermercado acolá, a doce Noemi teve de pendurar o boletim. A essa altura, adorava fotonovelas, devorava romances açucarados de Barbara Cartland e sonhava conhecer o tal de Castelo de Buckingham. E num estalar já era casada, com filhos e moradora do Bolsão Audi-União – uma zona de ocupação irregular com 1,7 mil famílias e areão para um Saara inteiro.

Mas que nada. Ali mesmo no bolsão a filha de seu Noel e dona Santa fez a promessa de fazer faculdade e ensinar algo que preste para a moçada da ocupação. Não foi bolinho. Só para concluir o ensino médio consumiu uma década, na base do levanta e sacode a poeira. Em 2003, sacudida até, passou no vestibular e ganhou um emprego na Cavo.

"Coloquei aparelho nos dentes, pus coisa dentro de casa. Roupa para filho era luxo", desata a articulada Noemi – uma celebridade no trecho da André de Barros, entre a Barão do Rio Branco e o Terminal Guadalupe, seu posto de trabalho enquanto o diploma não vem. Chato mesmo, só as guimbas de cigarro no chão. Tente varrer uma, seu fumante, para ver se é refresco.

Contei à heroína a experiência do psicólogo Fernando Braga da Costa, que durante dez anos circulou pela Universidade de São Paulo vestido de gari e não era reconhecido nem pelos amigos. Pesquisava a invisibilidade urbana e humilhação social, expressões que Noemi sabe bem o que significam, mas que não lhes tiram o sono. "Quer saber, até gosto quando não me notam."

Ela explica. A estudante – que planeja ser educadora à moda de Paulo Freire – já começou seu laboratório nas 16 quadras que lhe cabem nesse latifúndio. "Observo tudo em silêncio. Acho que espião deveria se vestir de gari. Tem cada coisa". Didática, compara varrer a rua a um programa de televisão, "com a diferença de que a gente é personagem também."

Noemi presencia de contos do vigário a cantadas infames. Nem a morena de sorriso largo, escondida no horrendo macacão laranja, escapa da investida dos bicos-doces. Tem bêbado que grita do outro lado da calçada: "Eu amo essa mulher. Casa comigo." Invisível, quem dera. Porque de surda, já tem de se fazer.

Ao saber de sua batalha pelas letras, há quem lhe solte os cachorros: "Diploma para quê? Para subir na vassoura?" Há-há. Quando ela conta, ainda dá para ouvir a risada da bruxa que falou. Sai fora, dona Mara.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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