Cá entre nós, o Livro de Rute, na Bíblia, bem merecia um bocadinho mais de ibope. É um achado, um elogio à cumplicidade, uma inspiração nas horas de infortúnio, amém. Sem falar no enredo dos deuses. De tão elevado, chega a ser engraçado.
À graça. Sogra e nora estão a um passo da eternidade: querem tirar as diferenças num bangue-bangue do Sergio Leone. Tem as que saem no tapa e as que juram vingança aos santos clamar. Não é o caso da sogra Noemi e da nora Rute. Essas duas verdadeiras civilizadoras do Mundo Antigo só não tomaram juntas o chá das cinco porque faltava glamour na redondeza.
O trecho do livro do qual mais gosto é aquele em que Noemi cujo nome significa "doçura" pede para ser chamada de Mara equivalente a "amargura". Pudera. Perdera o marido e os filhos, ficaram-lhe as noras que dispensa sem cerimônia, como era de se esperar. A nora Orfa se escafede. Rute lhe gruda na barra da saia o resto é que nem filme: não pode contar.
Acho curioso que essa história tenha inspirado tantas mães a batizar suas filhas de Mara e não de Noemi, o que reduziria a carga horária de sofrimento da humanidade. Deixe quieto. Por esses dias, finalmente conheci uma Noemi, digna de figurar nas Escrituras, a Noemi Francisco da Costa, 37 anos, moradora do Jardim Weisópolis, em Pinhais. É estudante do terceiro ano de Pedagogia na Facinter. E gari das 7 da matina às 3 da tarde.
Noemi veio parar por aqui ainda guria, quando a mãe saiu de Iporã, no Norte do Paraná, para se tratar nas Clínicas. Foi matriculada na Escola Municipal Irati, no Conjunto Mercúrio, Cajuru, e gostou do que viu: uma biblioteca. Bastou para que saracoteasse todo santo dia 40 minutos a pé para assistir às aulas. Era uma boa aluna. Chegou a passar em Contabilidade na Escola Técnica da UFPR, mas o mundo não se mostrou muito camarada com ela.
Na adolescência, entre um emprego de balconista aqui e de caixa de supermercado acolá, a doce Noemi teve de pendurar o boletim. A essa altura, adorava fotonovelas, devorava romances açucarados de Barbara Cartland e sonhava conhecer o tal de Castelo de Buckingham. E num estalar já era casada, com filhos e moradora do Bolsão Audi-União uma zona de ocupação irregular com 1,7 mil famílias e areão para um Saara inteiro.
Mas que nada. Ali mesmo no bolsão a filha de seu Noel e dona Santa fez a promessa de fazer faculdade e ensinar algo que preste para a moçada da ocupação. Não foi bolinho. Só para concluir o ensino médio consumiu uma década, na base do levanta e sacode a poeira. Em 2003, sacudida até, passou no vestibular e ganhou um emprego na Cavo.
"Coloquei aparelho nos dentes, pus coisa dentro de casa. Roupa para filho era luxo", desata a articulada Noemi uma celebridade no trecho da André de Barros, entre a Barão do Rio Branco e o Terminal Guadalupe, seu posto de trabalho enquanto o diploma não vem. Chato mesmo, só as guimbas de cigarro no chão. Tente varrer uma, seu fumante, para ver se é refresco.
Contei à heroína a experiência do psicólogo Fernando Braga da Costa, que durante dez anos circulou pela Universidade de São Paulo vestido de gari e não era reconhecido nem pelos amigos. Pesquisava a invisibilidade urbana e humilhação social, expressões que Noemi sabe bem o que significam, mas que não lhes tiram o sono. "Quer saber, até gosto quando não me notam."
Ela explica. A estudante que planeja ser educadora à moda de Paulo Freire já começou seu laboratório nas 16 quadras que lhe cabem nesse latifúndio. "Observo tudo em silêncio. Acho que espião deveria se vestir de gari. Tem cada coisa". Didática, compara varrer a rua a um programa de televisão, "com a diferença de que a gente é personagem também."
Noemi presencia de contos do vigário a cantadas infames. Nem a morena de sorriso largo, escondida no horrendo macacão laranja, escapa da investida dos bicos-doces. Tem bêbado que grita do outro lado da calçada: "Eu amo essa mulher. Casa comigo." Invisível, quem dera. Porque de surda, já tem de se fazer.
Ao saber de sua batalha pelas letras, há quem lhe solte os cachorros: "Diploma para quê? Para subir na vassoura?" Há-há. Quando ela conta, ainda dá para ouvir a risada da bruxa que falou. Sai fora, dona Mara.
José Carlos Fernandes é jornalista.
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