Conheci o botânico Gerdt Hatschbach lendo um texto do jornalista Fernando Martins, nesta Gazeta do Povo. Foi há uma pá de tempo, mas ainda lembro bem de ter sentido aquela volúpia que assola os repórteres quando farejam um grande assunto. Que Deus tenha misericórdia, mas nosso instinto é o de vender a santa mãezinha, se preciso for. Mal o texto do meu colega tinha esfriado e eu já planejava como seria minha forra, explorando algum aspecto da vida do cientista que lhe tivesse escapado. Chupei o dedo.
Tempos depois, numa reportagem para a qual reunimos montanhistas veteranos do Paraná, lá estava minha presa, o Gerdt. À revelia da fama de piadista e das piadas cabeludas , naquele dia ele estava apagado como um vigário de província. Não deu mole. Talvez estivesse inibido pelas estrelas presentes à entrevista, como os ambientalistas Erwin Gröger, o "Professor", e de Henrique Schmidlin, o "Vitamina". Não foi daquela vez.
Minha vez viria pela mercê da jornalista Eliana Fachim, que ligou sugerindo contar a história de amor entre Gerdt e sua mulher, Maria Magdaura. "Que tal?" Havia ali todos os ingredientes para uma crônica, uma novela das seis, uma canção da Paula Fernandes. Ele, pesquisador mundialmente conhecido, responsável pela descoberta de pelo menos 200 espécies de plantas, fundador do Museu Botânico em 1965; ela, mulher de poucas letras, ex-empregada da família Hatschbach, a quem Gerdt teria "enrolado" por pelo menos 20 anos antes de casar. Mas casou.
Maria me abriu a porta da casa com seu sorriso largo, óculos de formiga e blusas de bolinhas. Mas se mostrou desconfiada com a intromissão "o que lá interessava sua intimidade aos leitores do jornal?" Nem bem arrumei uma resposta e desatou a abrir álbuns e armários, locais onde guardava as provas de seu amor por Gerdt. Tinha um minimuseu junto da gaveta de talheres. Sugeri-lhe cobrar ingressos. Quando a tarde acabou, fiquei tão agradecido que o impulso era oferecer uma faxina grátis para a Eliana, aquela que me deu a dica.
Ainda hoje, conto por aí meu encontro com Gerdt e Maria. Eles desafiavam a máxima do Flávio Gikovate de que pessoas muito diferentes têm pouca chance de dar certo. Não sei dizer o que os fazia tão parecidos, ainda que frequentassem tabelas estatísticas opostas. Só posso afirmar que eram feitos do mesmo barro.
Entendi isso quando lhes perguntei como tinha sido a lua de mel, já que fora adiada por intermináveis décadas. Não me soltaram os cachorros, como era de se esperar de quem já andava às voltas com exames geriátricos. Disseram, ora, que os dois aproveitaram a ocasião para catar plantas no meio do mato. Nada de mais. Até Maria cair num banhado, ser socorrida pelo "marido", como ela se referia e ele, e acabarem os dois sentados na lama, rindo como dois gazeteiros de colégio.
Deduzi que naquele momento tiveram a certeza de que se amavam. Nunca mais tirei da cabeça a imagem de que duas pessoas que se querem são as que se divertem juntas. Rir é o ponto de fusão, cada tampa e panela que ache o seu. Meus pais, por exemplo, gargalham ao saber de episódios escatológicos. Nessas horas, consigo vê-los como um casal. O mesmo observo em outras duplas, mesmo as que vivem próximas de se esganarem em praça pública.
Há três anos reencontrei Gerdt e Maria para uma reportagem. Maria disparou um "de novo?" logo que me viu. Mas não botou vassoura atrás da porta. Gerdt veio com folhas escritas, nas quais caligrafou suas memórias em garranchos dignos de mandar a um egiptólogo. Confessou-se sem pudores: andava meio esquecido. Sentia saudades das expedições da mocidade. Tinha lances de amargura, aos quais temperava com humor escrachado, seguido de censura e sarros de Maria. Os dois continuavam se esbaldando nos banhados, que bom.
Na ocasião, acompanhei-o ao museu do Jardim Botânico, onde fazia catalogação como voluntário. Apresentou-me o biólogo Osmar dos Santos Ribas, a quem tinha como filho. Falamos de tudo um pouco da The National Geographic Society, da qual era membro, da serviceira que dava o herbário, da Calyptocarpus biaristatus, descoberta em 1942. Até Maria chamá-lo para o almoço e se irem. "Olhe só o cara que eu arrumei", disse, quase ressuscitando as 370 mil exsicatas do museu com sua simpatia. "Marido" fez algum gracejo de piá e se mandou, de braço dado com ela.
Gerdt morreu dia 16 de abril último, aos 89 anos. O mundo ficou pálido sem sua ciência e sua graça.
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