| Foto: Foto: Albari Rosa. Arte: Felipe Lima

Cresci ouvindo dizer que em­­baixo da minha casa pas­­sa um rio. Da minha e de pelo menos meio mi­­lhão de curitibocas, vizinhos de porta do Ivo ou do Juvevê, entre outros rios que jazem sob nossos pés, mais ou menos em paz. Onde mo­­ro, quando a água invade o po­­rão, alaga a cozinha e não há rodo que chegue, a invocação paterna, em tom de Juízo Final, é sempre a mesma: "É ele, o Rio Água Verde."

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É de rezar três Pais-Nossos e um Credo. A impressão que se tem é que qualquer hora o velho Água vai reclamar sua nascente, na Rua Estevão Bayão, formar cataratas na Praça do Japão, alagar cada caríssimo metro quadrado da Sete e da Silva para enfim transformar a Baixada num lago de Itaipu. "Moon River, wider than a mile..." É bom que o pessoal da Fifa não saiba disso. Aguaceiro no metrô. Maldição nas araucárias.

Dia desses, fiquei sabendo pela colega de ofício Bia Moraes, também avizinhada do "monstro adormecido", que um trecho do Água Verde não foi canalizado. Por pouco não sapateamos juntos. Fui a campo. Feito besta meti o nariz em tudo que é valeta. Anestesiado pelo cheiro dos ralos, acho que até vi o Velho do Rio fazendo trottoir na Rua Maranhão. Tempo perdido: aquelas águas de tanque eram do Córrego Guaíra. A propósito, havia por perto uma placa chamando os vereadores para uma pescaria.

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Semana passada, achei. Para meu espanto, o que so­­brou do Rio Água Verde fi­­cou, oras, pro Rebouças, pre­­cisamente na Lamenha Lins, entre a Engenheiros e a Bra­­sílio. Dizem que há outra "vis­­ta aberta" na Rua Iapó, no Pra­­do Velho, onde se dá a "po­­roroca" com o Belém. Pororoca, aliás, é uma palavra sugestiva para esse fenômeno da natureza, testemunhado apenas pelos ratos, baratas e algum foragido da PM.

Para conhecer o Água, bati palmas e esgoelei nos interfones. Os ribeirinhos todos querem mais é que o Água Verde entre pelo cano, hoje à tarde, sem direito a uma lágrima de saudade. Motivo: o rio que, diz-se, foi batizado de "verde" porque carregava o pó dos tonéis de erva-mate, ali lavados nos tempos da nonna Pina, só perde em catinga para o Rio Palmital, e olhe lá.

Mas resta alguma poesia. Num dos quintais em que ainda corre, dá para ver o Água Verde sair do subterrâneo, fazer a curva – às vezes em companhia de sofás e pneus – e banhar uma espécie de sociedade alternativa liderada pelo skatista Marcos Matozo, 30 anos. É quase mentira.

O lote em declive mal deixa ver a ribanceira de quatro metros e o barracão de madeira em que se esconde a moçada do ska. O IFH – Índice de Felicidade Humana –, ali, deve ser três vezes maior do que nas coberturas da Visconde de Guarapuava. Ruim mesmo, só o cheiro que sobe no verão e faz a turma da república se sentir acampando em Cubatão. Marcos coça o gorro: ora sonha que o rio amanheceu cristalino, ora fecha a cara e faz serão na prefeitura.

Do outro lado da rua, a casa que foi da veterana Dolores Greca forma uma sacada sobre o Água. A mata fechada esconde a correnteza e o que ela carrega. O barulhinho é bom. Sílvio Turra, 30, neto de Dolores, virou guardião das memórias dos Grecas que já se refrescaram à ribeira. Passado que vai longe. "Cê acredita que esses dias o rio ficou branco que nem leite. Jogaram sabe-se lá o quê..."

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Ao lado, mora Durvalina Haach, 90. Soma quase um século de beira-rio. "Nunca foi limpinho. A água era verde". Risos. E eis que ela aponta o dedo para o meio da rua, onde havia uma ponte feinha numa época de pinheirais, armazéns, galochas e pinhões bicados por loiras Clotildes. Ai-ai. "Cá entre nós, eu não gosto do rio", confessa Durva, com adeus. Buzinas. Meio-dia. Os carros correm Lamenha abaixo.