"Ve hovórete po ucrainski?" dispara à queima-roupa dom Jeremias Ferens à fotógrafa Priscila Forone, da Gazeta do Povo, ao se ver diante de um rebento da Ucrânia. Quer saber se ela fala a língua dos antepassados. "Ni, ni" desconversa Pri, com as bochechas rosadas de uma florista de Kiev. "Tsc-tsc-tsc. Os jovens não conhecem mais o idioma dos seus," decreta o arcebispo da Igreja Ortodoxa Autocefálica Ucraniana na América do Sul. Ele é solene: tem um dedo em riste na Panagia sua medalha episcopal e outro num fumegante Marlboro. Eis o homem.
Dom Jeremias é um fenômeno. Tem apenas 46 anos e nada menos do que 15 de episcopado. Sagrou-se bispo aos 30 e arcebispo ano passado. Sob sua tutela estão famílias ucranianas ortodoxas da Argentina, Paraguai e Brasil. Com tantos afazeres, passa quase metade do ano em viagens pastorais. Só aos Estados Unidos foi 34 vezes, sem falar na Turquia, Bélgica, Inglaterra, Espanha, Grécia e Guaratuba. Isso mesmo.
Ferens gosta tanto de Guaratuba quanto de Constantinopla, onde vira-e-mexe faz o beija-mão do patriarca Bartolomeu I, "papa" de 300 milhões de ortodoxos. Além da travessia no ferry-boat, não dispensa, idem, um batuque na cozinha, na qual manda tanto quanto na sua catedral bizantina a pequena São Demétrio, erguida em 1960 num capão da Cândido Hartmann. O templo é uma das melhores paisagens curitibanas: fica a meio caminho do Parque Barigui, tem um sino pequeno no pátio e, heresia, é vizinho de um megacentro de fitness e wellness.
Estando em casa, é o arcebispo quem comanda a feitura de pratos como o varêneke, perohê, holubtsy e do borsch sopa típica com beterraba, sua especialidade ao lado do hrin, a raiz forte, da qual é o maior vendedor da redondeza. "Eu invento receitas", anuncia Jeremias, o chef, entre uma tragada e outra. No quesito forno e fogão, admite, perde apenas para os gourmets do Restaurante Durski. E não lhe falem em pierogis de feirinhas de gastronomia: ele bufa.
Além de guloseimas, inventa piadas. Faça um teste procure o ucrainets mais próximo e pergunte se já ouviu falar de dom Ferens. Prepare-se para ouvir um sonoro "conheço. Ele é um sarro." Pois é mesmo. Se preciso for, lança mão da santa comédia até nas longas missas pontificais, originadas no século 4 e cantadas do princípio ao fim. Mal dá para imaginar os gracejos do clérigo paramentado de negro, em meio à bruma da vela de cera pura e diante de duas centenas de piedosos, todos em pé pois em rito ortodoxo cadeira não tem não.
"Tem quem não goste", cicia. Pois ele sente muito: trouxe o bom humor dos rincões de Papanduva, berço em que o aninharam Antônio Ferens e Tereza Krokhmalhny. Nada o detém. Sai com algum chiste até ao explicar o significado das duas serpentes que enfeitam o báculo episcopal: "Tem uma cruz no meio, viu é para uma cobra não comer a outra." E assim segue levando ao céu e às gargalhadas as cerca de 70 famílias de seu ainda mais minúsculo Vaticano. Se Ferens comparece, sobra alegria no Clube Subras ou na reunião das belas babas de maçãs salientes e gigantescos olhos azuis. Azuis como os dele.
Não escapam às anedotas nem os forasteiros que vêm às novenas a São Miguel, às segundas-feiras. Nesses dias, o público é de descendentes de italianos, alemães, caboclos e quem mais esteja à caça de uma graça, incluindo os poloneses, com quem os ucranianos não se bicam pelo menos desde o século 14. Não importa: é impossível passar impune pelo arcebispo um sujeito cheio de bossa, que fuma de clergyman e com os pés no chão na sacadinha de seu palácio episcopal igual a tantas casas da Curitiba mais ou menos de vida. Ele é dos nossos.
Não por menos, os fiéis o enchem de presentes. Ainda bem que usam desconfiômetro: nada de meias, lenços e toalhas. O arcebispo já tem reservas para a eternidade. "Eu gosto é de perfume", diverte-se. Baforada, tchau e bênção: slava Issusu Christu. Salve, salve Jeremias.
José Carlos Fernandes é jornalista.
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