| Foto: Felipe Lima

Imagine esta cena: uma mulher está sentada em um banco de madeira em frente a uma pequena escola. Ela aguarda a saída das crianças para levar uma das alunas para casa. Aparenta ter cerca de 30 anos, tem o cabelo muito loiro preso em um coque elaborado. É esguia e usa um vestido verde elegante e simples. O dia parece nublado. Enquanto espera, a moça tira da bolsa uma cigarreira forrada de couro e pega um cigarro. Na primeira tragada, seu rosto parece tranquilo. Mas ela começa a olhar ansiosamente para a escola, que está à sua esquerda. Não vira a cabeça o suficiente para ver o que está acontecendo atrás dela. Um pássaro pousou em um brinquedo do playground. Mais uma tragada e outro pássaro aparece. São segundos, que parecem uma eternidade, e finalmente ela nota que está cercada por pássaros – corvos, provavelmente.

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Você já sabe que estou falando de Tippi Hedren na cena que antecede o ataque às crianças em Os Pássaros, o filme de Alfred Hitch­­cock. Gosto do filme e, dentro dele, esta é a minha cena favorita. E, em qualquer cena, Tippi Hedren é a minha imagem favorita. Acho essa mulher fantástica por dizer tantas coisas usando tão poucos elementos: ela não muda de roupa, não mexe no cabelo e fala pouco. Mas dá para imaginar uma biografia inteira para Melanie Daniels, sua personagem rica, inteligente, desocupada e muito chique.

Se tivessem me perguntado aos 12 anos que mulher eu gostaria de ser, diria que queria ser Melanie Daniels. Na época, eu era fascinada pela aparência dela, pela aura de mistério. No enredo do filme, o que me conquistava era a pergunta que ele deixa no ar: por que os pássaros atacaram a cidadezinha de Bodega Bay? Eu estava convencida de que era por causa dos periquitos que Melanie deu para a menina Cathy, que deveriam estar provocando algum fenômeno paranormal.

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Depois de ver e rever Os Pássaros ao longo dos anos penso que não há razão alguma para o ataque. Hitchcock só quis criar uma situação inusitada, em que aquilo que consideramos inofensivo e familiar (a presença de pássaros entre nós) se transforma em um caos que assusta e até mata. Não, a minha adorada Melanie não levou a desgraça a Bodega Bay, como uma moradora histérica chega a acusar (bem fez a Melanie de dar uma tapa no rosto da acusadora). Ela estava lá só para tornar tudo mais interessante.

A professora e escritora Camila Paglia tem um livro em que analisa Os Pássaros cena por cena. Também comentou o filme para uma exibição comemorativa na tevê inglesa. Fez sofisticadas interpretações das forças ocultas por trás da trama aparentemente banal. Chama a atenção, por exemplo, para a angústia da personagem de Jessica Tandy, Lydia, viúva recente que fica perturbada toda vez que uma mulher se aproxima do filho, Mitch (Rod Taylor). Os olhares que Lydia lança para Melanie são de congelar a medula da moça. Não é à toa que mesmo ela, corajosa e ousada, quase recua diante da ciumenta futura sogra. Será que o medo e a raiva de uma mãe têm força suficiente para mobilizar os pássaros e usá-los para provocar uma catástrofe? Camila Paglia insinua que sim.

Na última vez que vi o filme, o que me chamou a atenção foi o silêncio. Há muitas cenas sem diálogos ou com falas curtas. São as expressões faciais que insinuam e geram dúvidas. Na primeira cena, quando Mitch se dirige a Melanie em um petshop, ele para por um segundo assim que vê o rosto dela. Será que já se conheciam e estão brincando entre si? Não. Desco­­briremos que Mitch tinha visto fotos dela em jornais, envolvida em um escândalo quando tomou banho nua em uma fonte de Roma. Mas ele decide provocá-la tratando-a como vendedora da loja – que sabia que ela não era. Em tempo, Os Pássaros é de 1963 e La Dolce Vita é de 1960 – portanto, sim, Hitchcock pode ter feito uma referência ao filme de Fellini.

O que sempre me faz voltar a ver Os Pássaros é a lembrança daquela primeira vez em que a família reunida viu o filme na tevê e ficamos com a impressão de que precisávamos "entender" a história. Não entendemos o que estava por trás dos ataques dos pássaros porque não tinha muito mais para entender. Era um belíssimo filme, com ótimas atrizes e o charme contido de Tippi Hedren. É só e não é pouco.

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