Seria possível escrever uma história política do Brasil a partir das denúncias infundadas que atingem homens públicos e cidadãos comuns. Uma mistura perigosa do desejo de furos jornalísticos e do vale-tudo eleitoreiro tem possibilitado uma sucessão de linchamentos morais que espalham versões sobre a vida das pessoas, sem uma preocupação com a verdade.
Trabalhando em duas frentes, a da vida pública e a da privada, em duas classes sociais, a de um pequeno funcionário público e a de uma família de diplomatas poderosos, Ana Maria Machado traça um painel dessa nossa propensão pelas versões vexatórias em um romance de grandeza maior: Infâmia. Avessa a uma escrita com as marcas estereotipadas do feminino, a autora constrói uma narrativa sobre o Brasil, que percorre a história do país e a cultura popular, aproximando uma família de intelectuais e outra de pessoas ligadas ao samba, ao bar e às religiões africanas. É, portanto, um livro contrário ao intimismo de extração feminina. Falando dos escritos da filha, o embaixador Vilhena afirma algo elucidativo: "... uma espécie de moda se espalhara um pouco desde que Clarice Lispector, mulher de diplomata, começara a escrever uns contos sobre a rotina do cotidiano e os problemas psicológicos femininos e com isso acabara se transformando [...] num ícone do feminismo internacional" (139). Infâmia opta pelo real. A marca do livro é o contraponto. Duas trajetórias distintas que se cruzam pela exposição à mentira.
Um embaixador aposentado, ex-menino da roça, está quase cego. Este seu estado de saúde vai determinar uma viagem interior, em que ele tenta entender a morte da filha única. Há algo mentido nessa morte. A verdade só virá quando seu neto, também diplomata, tal como o pai e o avô, começar a remexer no passado. Uma das vertentes do romance é o desvelamento da vida conjugal da filha e do que ocasionou a sua morte. O conhecimento de tais fatos não deixará margens para a inocência. Avô e neto terão de tomar decisões que modificarão suas vidas, corroendo a falsa urbanidade do meio diplomático. Nessa parte do relato, a vida conjugal padrão esconde violências sob a proteção de uma instituição que se propõe como um país à parte.
Na outra vertente, o responsável pelo almoxarifado de uma repartição pública denuncia a corrupção, sofrendo um massacre por parte de uma mídia municiada pelos criminosos. Assim, o inocente é tragado pelos fatos que ele próprio revelara, situação comum num tempo de busca de escândalos a todo custo e de leis frouxas. Diferentemente do que acontece com a família do embaixador que, por preservação, mantém uma distância da pessoa que está sofrendo a ação difamatória, a família do funcionário se solidariza com ele.
Embora com uma história dupla, o romance tem guarda uma unidade interna. É a postura mais acalorada de um grupo tipicamente carioca que contamina os intelectuais ligados à diplomacia. Este contato com o sofrimento do inocente que ousa contrariar interesses políticos gera um olhar mais atento do embaixador, levando-o a não ocultar a vilania do meio em que viveu, e que acabou matando sua própria filha.
O romance se divide em três partes: "Intrusos", "Intromissão" e "Introito". No começo, o embaixador se sente apenas um intruso no mundo da ficção, vivendo pacificamente à sombra dos clássicos que ele leu e que tanto admira a sua cegueira simboliza isso. Aos poucos, no entanto, vai se introduzindo na realidade. A conclusão do embaixador, depois de operar os olhos e voltar a ver, aponta um caminho literário: "ser capaz de não me excluir do real ao ser intruso no fictício" (p.276). É esse o prodígio de Ana Maria Machado no romance Infâmia.
Serviço
Infâmia, de Ana Maria Machado. Alfaguara, 280 págs., R$ 42,90.
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