Para meu pai, tínhamos que ter gosto pelo trabalho desde cedo. Por isso es­­távamos sempre na má­­quina de ar­­roz, fazendo algum ser­­viço pa­­ra ir aprendendo aquela que para ele ainda é a profissão mais digna de todas – a de co­­merciante. Var­­rendo o chão do armazém, organizando o pequeno escritório, remendando a sa­­ca­­ria velha e prin­­cipalmente a­­ten­­­­dendo os fregueses do varejo pas­­sávamos o tempo.

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Sempre havia uma senhora ou uma criança comprando um pou­­co de arroz para o almoço, meio quilo de feijão, alho ou qualquer outro mantimento básico. Éramos nós que pesávamos os produtos, pro­­videnciando o troco. Como co­­merciante, o pai tinha verdadeira devoção pela matemática – so­­mar, multiplicar, dividir ou diminuir. Prin­cipalmente somar e mul­­tiplicar, princípio de prosperidade que ele tanto cultuava.

Fora do horário da escola, ficávamos pela máquina de arroz fa­­zendo estas pequenas tarefas e brincando em meio ao tumulto de um comércio naquela época muito intenso. Para retirar o produto dos caixões de madeira com tampa, usávamos conchas ve­­lhas. Todos os saquinhos de papel que chegavam em casa eram dobrados e levados à cerealista, para serem reutilizados, mesmo que fizessem propaganda de algum concorrente. Nós mesmos nunca tivemos embalagens personalizadas. Despejar o produto no saquinho, tentando acertar o peso que o cliente pedia, era também uma forma de diversão. E o pai incentivava isso. De­­pois, fazer o troco corretamente, contando cada centavo, pois o comércio do varejo lucra nas moedinhas.

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Assim, neste contato com a re­a­­lidade, fomos sendo criados num mundo em que o centro eram as balanças, sempre corretíssimas – o pai queria vencer pelo trabalho, nunca por espertezas suspeitas. Rigoroso consigo mesmo, não perdoava o menor deslize dos filhos, punidos em público com repreensões e na intimidade com grandes surras, pelas quais já aguardávamos assim que infringíamos um de seus princípios. Antes de tudo, aquele era um universo moral.

Se não havia tolerância nem com ele nem com os filhos, o pai também tratava com rigor os cli­­entes e as demais pessoas que apareciam na máquina de arroz. Não lhes tirava um centavo, mas não lhes dava nada. Todos tinham a obrigação de trabalhar para conquistar o próprio sustento. E ele não aceitava a tese de que, em sendo saudável, uma pessoa passasse necessidade. E os tantos terrenos baldios na cidade? Por que não plantavam mandioca ou milho, cultivavam uma horta ou criavam um capado? Quando se separou da primeira mulher, e sem ter o que fazer, recomeçou a vida semeando arroz em um ba­­nhado na fazenda de um parente – meu avô Zé-Zabé. Logo acabou casado com umas das filhas deste, viúva ainda recente, com duas crianças para encaminhar – minha irmã e eu.

Movido por estes princípios, ele nos criou numa colméia, to­­mando a todos como abelhas operárias, que faziam a sua parte para garantir a sobrevivência do grupo. Pela manhã, quando o sol estava nascendo, ele ligava o rádio da cozinha, sintonizando justamente a Colméia, uma emissora de Campo Mourão. Lembro-me ainda hoje da vinheta de abertura do programa: "Aqui é o Rancho do Coronel Bastião. Está na hora de levantar e trabalhar para a grandeza do Paraná". Era o toque de corneta no quartel em que vivíamos. Ainda sonolentos, esgueirávamos para o banheiro, depois para a cozinha, onde uma mesa colona estava posta: pão caseiro, leite crioulo, margarina, café recém-coado e chá para as crianças.

Neste seu calendário de trabalhador, apenas o domingo era destinado ao descanso. Um descanso relativo. Ele acordava cedo, fazia a barba, preparava o café e nos tirava da cama um pouco mais tarde, para que fôssemos à missa das oito. Embora já tivéssemos carro, íamos a pé, cruzando a metade da cidade. Na volta, dependendo de nosso comportamento, podíamos ganhar um sorvete ou um doce.

Ele nos deixava com a mulher, que prepararia a macarronada e o frango assado, ou nos levava para a chácara onde os pais e irmãos dele moravam. Lá, cortaria o nosso cabelo e de quem mais precisasse, pois era vergonhoso deixá-los crescidos. Depois do almoço, ele saía para uma visita a sítios ou para fazer algum serviço que não podia esperar.

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Durante o domingo, aparecia gente querendo algo da cerealista que ficava na frente de casa. Era a hora de exercitar o que havíamos aprendido com o mestre. Como o pai deixava a porta só encostada, abríamos sem dificuldade o ventre escuro do armazém, acendendo uma lâmpada fraca sobre os caixotes de mantimento, pesando sozinhos o arroz ou o feijão para o cliente. Eram geralmente pequenas quantias.

Chegando em casa num fim de domingo, um homem que era quase mendigo trazia umas notas amassadas e queria comprar arroz. Voltava para o sítio, provavelmente depois de uma bebedeira. Abri a cerealista e ele apontou o caixote com meio arroz, o mais barato de todos, perguntando quanto custava. Queria meio quilo. Na hora, abaixei o preço vergonhosamente: cinqüenta centavos o quilo. Ele contou as notas sujas, eram três cruzeiros. Pediu então 8 quilos, encarando-me com uns olhos vermelhos. Peguei dois saquinhos grandes e pesei com cuidado aquela quantia, mesmo sabendo que o dinheiro dele não pagava todo aquele arroz. No final, como sobrasse um pouco na concha, resolvi dar de lambuja o resto. Ele então olhou uma pilha de saco vazio de açúcar, que vendíamos por um preço bem elevado, e me pediu um deles para guardar o arroz. Cedi, sem forças para reordenar as relações.

Ele me entregou com remorso as três notas, guardou os dois pacotes no saco alvejado e saiu para a rua sem nem se virar para mim.

Pena que o pai não estivesse ali para ver meu progresso como comerciante.

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