Se existe um texto aqui do jornal que eu aprecio é o do José Carlos Fernandes, com a sua coluna temperada ao gosto curitibano. Na última, cujo título é "O Rio Água Verde não passa mais aqui", ele conseguiu me jogar na infância. O Rio do Ivo e o Rio Água Verde fazem parte da minha meninice, nasci a pouca distância da nascente do primeiro, e o segundo passa nos fundos do que era a chácara do meu avô, também a poucos metros de sua nascente.
O José Carlos foi conhecer o Rio Água Verde mais velho e decrépito, totalmente poluído e malcheiroso. No meu tempo de piá, isso nos primeiros anos de 1940, ele ainda era um córrego cristalino com o fundo atapetado de algas verdes, vegetação que deu o nome para o regato. Nasce numa vertente nas esquinas das ruas Carneiro Lobo e Silva Jardim, já alimentado por dois filetes e ia serpenteando pelo seu vale em direção ao Guabirotuba.
Digo ia porque agora vale o título da coluna: não passa mais ali. No início da década de 1970, foi construído um prédio na Avenida República Argentina com parte das estacas fincadas dentro do próprio rio, graças a um jeitinho especial com a prefeitura. Não bastasse o jeitinho, arrumaram um jeitão cinquenta metros abaixo. Agora era para favorecer a construção de duas torres, obra da famosa Encol, com frente para a Avenida Iguaçu. O leitor acredite, tem certas pessoas que conseguem fazer o impossível.
O Rio Água Verde foi desviado do seu leito natural logo ao passar pelos fundos da Sociedade Internacional, fazendo um cotovelo de quarenta e cinco graus subindo junto ao muro da sociedade, atravessando a Avenida Iguaçu e dobrando outra vez em cotovelo para descer por baixo da caçada oposta, por mais de trezentos metros, para então cair outra vez em seu leito. E foi assim, um prédio dentro do rio, outro dentro por onde passava o rio. Ainda tem gente que acredita no respeito aos fundos de vales.
Como digo, no meu tempo de piá, o regato cristalino estava cheio de vida. Minúsculos barrigudinhos circulavam pelas águas; girinos de rãs e sapos se amontoavam sobre as algas; na sua várzea, pererecas e outros batráquios se escondiam. Antes dos anos sessenta já não havia mais nada, o rio estava poluído e morto. A última vez que aconteceu de aparecerem seres com vida naquelas águas foi um deus nos acuda.
Lá por 1965, um pescador do litoral houve por bem achar em vender caranguejos em frente da Sociedade Internacional da Água Verde. O caiçara exagerou, veio com uns vinte sacos cheios daqueles crustáceos. Vendeu até o fim do dia perto de cinco sacos. O restante pediu para guardar para dentro do muro da sociedade para, no dia seguinte, continuar a venda.
Dois amigos meus, fotógrafos, estavam jogando truco no interior do clube e, lá pela madruga, já com os dentes dos sizos boiando, se retiraram. Ao passarem pelos sacos, o movimento dos bichos chamou a atenção dos dois pudins, que, incontinenti, resolveram ver o que era. "Coitadinhos, estão vivos... que malvadeza, vamos soltar os bichinhos". Não deu outra, a caranguejada solta levou o resto da madrugada se espalhando.
Ao raiar do dia, tinha caranguejo por tudo quanto é canto. Na Avenida Iguaçu, uma porção foi esmagada pelos carros. Uma mulher distraída no ponto do ônibus sentiu alguma coisa tocar em seu pé, baixou os olhos e... Pimba! Desmaiou. Uma grande quantidade da bicharada se enfiou no rio. O pescador, quando chegou, teve um ataque de desespero. Por volta do meio-dia a piazada da região estava assanhada, o Rio Água Verde estava cheio de caranguejos. Tinha guri caçando caranguejo até nos fundos do estádio do Atlético. Foi a última vez que aquelas águas portaram alguma vida.
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