Polícia é vigiada 24 horas pelos cartéis do contrabando, que montam estratégias a partir das informações dos espiões| Foto: Reprodução: Polícia Rodoviária Federal

Espionagem garante os negócios

Mortes, intimidações e estresse constante fazem parte da rotina dos agentes públicos incumbidos de combater o contrabando de cigarro do Paraguai para o Brasil. A tensão e os riscos são permanentes, agravados por três episódios recentes em 2013. Em 25 de abril, um policial federal ficou ferido em troca de tiros com policiais paraguaios ao perseguir contrabandistas na Linha Internacional, estrada de terra na fronteira seca com o Mato Grosso do Sul. A Polícia Nacional do Paraguai disse não saber se tratar de oficiais brasileiros em operação num veículo descaracterizado.

Em represália à apreensão de três caminhões lotados de cigarro, os contrabandistas atearam fogo a dois veículos no posto da Polícia Rodoviária Federal em Mundo Novo (MS), em 11 de julho. Na mesma cidade, um cabo da Polícia Militar foi morto numa operação de repressão ao contrabando de cigarro em 30 de agosto. José Rodrigues de Lima, de 47 anos, foi atropelado pela caminhonete do contrabandista que tentava fugir do cerco ao grupo que fazia o transbordo da mercadoria de duas lanchas atracadas num porto clandestino às margens do Rio Paraná.

A rotina de tensão inclui ainda espionagem 24 horas por dia. Policiais e auditores da Receita Federal são permanentemente vigiados por espiões da máfia do contrabando de cigarro. Olheiros das quadrilhas fazem vigília em frente da casa dos servidores e das repartições públicas para alertar os operadores do contrabando sobre movimentações que indiquem a realização de alguma operação de repressão.

A Polícia Rodoviária Federal descobriu um ponto de espionagem num matagal perto do seu posto de controle na BR-277, em Santa Terezinha de Itaipu (PR), a 20 quilômetros da fronteira com o Paraguai. No local havia uma barraca para o espião passar a noite, aparatos para fazer refeições e binóculo para observar a movimentação do posto fiscal na rodovia. A partir do monitoramento da rotina dos policiais, as quadrilhas definem as estratégias para escoar o contrabando por desvios já estabelecidos.

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Assista documentário sobre o contrabando de cigarro na América Latina

Chefe do Nepom de Guaíra, Carlos Alberto, durante operação
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A Gazeta do Povo acompanhou operações de combate ao cigarro pirata em três cidades do Paraná, realizadas pela Receita Federal em Céu Azul e pela Polícia Federal (PF) em Guaíra e Foz do Iguaçu. Numa incursão pelo Rio Paraná na lancha blindada do Núcleo de Polícia Marítima (Nepom), ouvia-se ao longe os tiros de pistola, uma intimidação frequente segundo o policial Celso Calore. Durante uma hora, a equipe foi seguida por uma lancha de contrabandistas na margem paraguaia, tendo Ciudad del Este ao fundo. Era o encarregado de avisar pelo celular o momento de passar as cargas.

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Em outra ocasião, a reportagem flagrou soldados da Marinha paraguaia dando cobertura aos operários da indústria do contrabando às margens do Rio Paraná, em Ciudad del Este. Fuzil a tiracolo, o militar conversava com três carregadores de caixa em uma tenda nas barrancas do rio, a poucos metros de onde os barcos atracam. Em poucos minutos, cinco embarcações ficaram abarrotadas de caixas revestidas com sacos pretos, uma estratégia para proteger o cigarro da umidade e para esconder da polícia a carga dentro dos carros com película escura que farão o transporte por terra.

São muitas as dificuldades para combater esse crime. A começar pelo reduzido efetivo policial, a sofisticada logística dos contrabandistas e o extenso e multifacetado território usado para escoar o cigarro. O trabalho depende da experiência e da disposição dos policiais, como a reportagem pôde constatar no dia em que acompanhou uma operação do Nepom em Guaíra. Com o carro particular, no intervalo do almoço, um policial havia acabado de perseguir e apreender um carro com cigarro e 40 caixas de Playstation 4 contrabandeados do Paraguai. Não foi a única façanha do dia.

Uma operação iniciada às 15 horas só terminaria às 21h30, com toda carga de sorte e azar que os policiais poderiam esperar. Os veículos da PF e dos policiais já são conhecidos pelos contrabandistas. Por isso, o chefe do Nepom, Calos Alberto Rocha, e o policial Paulo Rocha Gonçalves Júnior usariam um estreante Fiat Pálio. A primeira investida não deu resultado. O porto clandestino às margens do Rio Paraná estava desativado havia meses. Seguindo pelas estradas rurais de Guaíra, tradicionais rotas de fuga dos contrabandistas, Alberto sentiu aguçar o instinto de policial.

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Alberto sabia que os contrabandistas passaram a colocar adesivo de empresas nos carros para despistar a polícia. Por isso ficou intrigado com o Fiat Uno que passou por nós em alta velocidade, levantando poeira na estrada de chão. Seguiu-o à distância. Logo estava na entrada da picada aberta pelos traficantes na mata para dar acesso às margens do Rio Paraná. De longe, ouviu o motor do barco. Apressou-se. O carro passa rente às árvores no caminho estreito. Ao despontar na margem do rio, o barco já não estava. O piloto ouviu o carro se aproximando e fugiu.

O policial teve uma ponta de frustração ao encontrar apenas algumas caixas às margens do rio. Mas não se deu por vencido. Notou a grama amassada. Dirigiu sobre pedras e buracos até avistar dois carros. Chegou atirando no chão para alertar sobre seu poder de fogo. Desceu para inspecionar os veículos, ambos com adesivos de empresas. Um deles era o Fiat Uno. Os motoristas fugiram com as chaves. Dava para ouvir galhos quebrando na mata. Não compensava persegui-los. Alberto estava sozinho – Paulo havia ficado na entrada da estrada para impedir uma eventual fuga de carro.

Sob um calor insano, Alberto chamou reforço para rebocar os carros, ambos lotados com cigarro das marcas Eight e Rodeo, produzidas pela Tabacalera del Este, cujo sócio majoritário é o presidente do Paraguai, Horacio Cartes. A caminhonete Nissan que chegou com dois policiais para rebocá-los acabou atolando num lamaçal em um caminho alternativo à picada no meio da mata. Agora seria preciso chamar um guincho para rebocá-la e outra caminhonete para puxar os carros.

Alberto fazia o resgate dos carros com a nova caminhonete quando vieram avisá-lo que o guincho que rebocava a Nissan também havia atolado no lamaçal. Agora seria preciso outro guincho para rebocá-lo. A operação só terminou seis horas e meia depois de iniciada, quando os dois carros e as cargas apreendidas foram entregues à Receita Federal em Guaíra.

Ordem do chefe é ir para cima dos policiais

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A indústria do contrabando não faz distinção de idade. Contrata quem estiver disposto a correr riscos – e são muitos para os jovens que trabalham nos escalões inferiores. O perigo não está na prisão em flagrante – o patrão sempre paga a fiança – mas nas ações mal sucedidas, que os colocam de frente com a morte.

"A ordem do patrão era que a gente não parasse os carros e não obedecesse a polícia de forma alguma. Era para fugir a todo custo, custe o que custar. Então eu tentei fugir. Joguei o carro em cima da viatura da Polícia Civil para que eles saíssem da pista, mas eles conseguiram ficar na pista e, mais adiante, após alguns disparos de arma de fogo, eles conseguiram fazer com que eu parasse." O relato é de um adolescente de 15 anos, contratado para levar uma carga de cigarro de Salto de Guairá, no Paraguai, até Naviraí, no estado do Mato Grosso do Sul.

Júnior ganharia R$ 300 pelo serviço. Wagner da Silva Farias o acompanhava em outro carro carregado com cigarro. À frente seguia um batedor, para avisar sobre eventuais barreiras policiais. Todos tinham radiocomunicadores. Júnior e Wagner seguiram pela Linha Internacional, uma estrada de chão que divide Brasil e Paraguai, até sair na BR-163 pela estrada de Japorã. Logo à frente, se depararam com uma viatura da Polícia Civil de Eldorado (MS). Júnior e Wagner não obedeceram à ordem de parar. Foram perseguidos e presos.

Wagner trabalhava havia sete meses como motorista dos contrabandistas. Fazia duas viagens por mês, a R$ 200 cada. Pegava a carga no Sítio do Macaquinho, em Salto del Guairá, e entregava no Assentamento Santa Rosa, zona rural de Itaquiraí (MS), às margens da BR-163, onde um grupo do Paraná já aguardava o cigarro. "A ordem do Tartaruga [o patrão] é que caso a polícia mande parar, é para não obedecer e fugir. Ele disse que não é para chegar lá sem os cigarros e o carro, por isso a gente foge a todo custo da polícia", conta Wagner.

A mesma ordem estava sendo cumprida por Alessandro, de 21 anos, quando ele capotou um Renault Sandero ao tentar escapar da perseguição de uma equipe da Receita Federal, em uma estrada rural de Santa Terezinha de Itaipu (PR), a 20 quilômetros da fronteira com o Paraguai. Fez o que pôde para fugir a toda velocidade, mas perdeu o controle. Alessandro contou com a sorte, apesar das múltiplas escoriações. A equipe da Receita conduzia uma carga de cigarro apreendida quando se deparou com um comboio de oito carros, do qual Alessandro se desgarrou.

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De dentro do carro da Receita, outro motorista dos contrabandistas presenciou a capotagem do colega. Adriano, de 26 anos, ganharia R$ 100 para entregar a carga em Santa Terezinha de Itaipu, depois de desviar a Polícia Rodoviária Federal. Já havia sido pego duas vezes com cigarro, mas nunca ficou preso. O patrão pagou a fiança. Ele sabe que o que faz é ilegal, mas tenta relativizar. "Tem que sobreviver. Roubar é que eu não vou, não tenho coragem", diz. "É ilegal. É crime. Pra mim não é, fuma quem quer. Fazer o quê? É a profissão".

Ajudante em metalúrgica, Adriano ficou desempregado e acabou sendo contratado por contrabandistas. Aprendeu os caminhos alternativos para fugir da polícia. Desta vez, levava 20 caixas de Plaza em um Fiat Uno. Abordado por uma equipe da Receita Federal numa dessas rotas de fuga, tentou escapar pelo meio de uma plantação de soja. "Pensei que era ladrão", justificou. Ele foi assaltado várias vezes puxando cigarro e brinquedos do Paraguai.

Esta reportagem foi produzida com apoio do Instituto Prensa y Sociedad, do Peru, com a colaboração dos jornalistas Martha Soto, do jornal El Tiempo, da Colômbia, e Ronny Rojas, do jornal La Nación, da Costa Rica.

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