Em tempos obscuros, injustos e carregados de incertezas, como é possível pensar a cidade do século 21? Não falo de Curitiba, São Paulo, Londres, Paris, Nova York, Almirante Tamandaré ou Pomerode. Refiro-me a uma ideia genérica de cidade que se desenha, que emprestará partes de si, algumas de suas características, para cidades tão diferentes e distantes quanto Almirante Tamandaré e Londres – cada qual em sua escala de absorção e apropriação desses aspectos. É possível pensar em uma pequena lista de fatores que, principalmente por seu caráter intercomunicacional, já influenciam a conformação dos espaços urbanos de hoje e de amanhã: código, automação, dados, vigilância, monitoramento, controle, conexão, inteligência e coisas.
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Sim, coisas! Objetos, dispositivos, ferramentas, artefatos, utensílios, instrumentos, edifícios, infraestrutura, entre outras coisas, estão falando entre si, conectando-se uns aos outros – a chamada Internet das Coisas –, e executando tarefas autonomamente e influenciando ações realizadas por nós. As coisas e sua comunicação já formam uma parte significativa do tecido social que define a vida contemporânea em um mundo urbanizado.
Cidade programável
Estamos testemunhando o surgimento da cidade programável. Vários aspectos da vida do homem contemporâneo estão a ponto de serem ampliados pelo poder de armazenamento e manipulação de uma quantidade de informações até então inimaginável. Automação e inteligência são as expressões no momento. Parece que, finalmente, o sonho moderno de uma civilização suportada pelo trabalho das máquinas, aos poucos, torna-se realidade. A famosa casa moderna automatizada retratada no filme Mon Oncle (Jacques Tati, 1958) está se materializando, dessa vez sem a genial ironia de Tati, e também na escala da cidade. Praticamente todas as atividades que dominam a vida urbana contemporânea podem ser digitalizadas, mapeadas, monitoradas e controladas por sistemas e por padrões de comportamento pré-definidos. A cidade está sob controle! Pelo menos é assim que os entusiastas da smart city pensam.
Controle ou restrição?
Mas essa capacidade de uso de dados e informações também pode ser restritiva. Diferentes imaginários urbanos de vidas e espaços dominados pela codificação digital também estão representados em filmes, como The Matrix (irmãos Wachowski, 1999) e Minority Report (Steven Spielberg, 2002), e não são mais percebidas como fantasias de um futuro distante. O conforto e a conveniência de um mundo dependente de coisas interconectadas tem o seu preço, pago pela perda de privacidade e pela real possibilidade de manipulação de dados pessoais, identidades, identificações, e uma vigilância constante. Não se pode esquecer que a utilização de aplicativos e sistemas que automatizam processos, também faz com que governos e empresas (responsáveis pelos serviços) consigam coletar dados específicos sobre a identidade e os hábitos dos “usuários”. Deve-se considerar, ainda, a íntima e perniciosa associação dessas possibilidades tecnológicas com a indústria militar e da segurança.
A vigilância e o surgimento de uma cidade simultaneamente automatizada, smart e dependente de dados (big data), representam a mais recente materialização da sociedade de controle (sugerida pelo filósofo francês Gilles Deleuze). Nesta cidade, fatores como ubiquidade, interoperabilidade, invisibilidade, miniaturização e controle, atuam por meio de tecnologias sofisticadas e uma imensa quantidade de dados, e estão disponíveis para que governos e grandes empresas exercitem classificações sociais e marketing direcionado.
Penso que a essa altura, já não é mais uma questão de escolha viver ou não sob a sociedade dos dados e controles, mas de poder discutir e lutar pelo melhor equilíbrio entre o “conforto moderno” e o sonho, cada vez mais distante, de uma sociedade urbana livre e igualitária.