Nos últimos cinco anos, em que o turismo ganhou mais importância para a economia de Lisboa e da cidade do Porto, tem sido comum encontrar nos jornais e websites portugueses notícias sobre o fechamento de estabelecimentos comerciais tradicionalíssimos de bairros históricos das duas cidades. Há também, em paralelo, uma preocupação das pessoas que escolheram essas regiões para morar com a manutenção de um estilo de vida, de uma identidade. Mas esse é apenas um dos efeitos do que alguns pesquisadores de lá estão chamando de “turistificação” das cidades europeias. Em resumo, a expressão trata da mudança de perfil dos moradores de pequenas regiões, em especial dos bairros históricos, em razão de uma mudança de contexto: o boom do turismo e a atuação legitimadora disso pelo poder público como uma reação à crise econômica vivida entre 2008 e 2012 na região.
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Em entrevista à Gazeta do Povo, o professor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território e do Instituto Interdisciplinar de Investigação da Universidade de Lisboa, Luís Mendes, traça o histórico desse fenômeno nas cidades portuguesas e arrisca algumas perspectivas sobre o assunto. Em especial, deixa claro que uma série de mudanças legislativas feitas para tirar proveito do interesse turístico e estrangeiro acabou por gerar distorções que, na visão de Mendes, estariam levando à expulsão dos moradores tradicionais e também dos mais pobres de algumas das regiões de Lisboa e Porto.
É um cenário semelhante ao dos centros de algumas capitais brasileiras, mas causado por razões diferentes. Por aqui, os centros das grandes cidades foram perdendo sua identidade inicial, de local misto de moradia e comércio, por razões como a concentração de investimentos públicos em determinadas áreas e em detrimento de outras, a especulação imobiliária e a insegurança urbana.
Confira a entrevista:
Quais são as causas de processo de gentrificação turística, ou seja, da mudança forçada de perfil de algumas regiões, em Lisboa? Como tem avançado esse processo?
Sabemos que até início do séc. 21 o processo era marginal e embrionário nas duas grandes cidades portuguesas de Lisboa e Porto. Chamo-lhe a “pocket gentrification” ou “gentrificação embrionária”. Digo isto, pois o seu estágio era primário, tanto que o seu crescimento era lento e esporádico, manifestando-se no espaço urbano de forma pontual e fragmentada, numa pequena escala circunscrita e limitada a apenas alguns apartamentos ou, quando muito, a alguns quarteirões de bairro. O desalojamento era diminuto ou mesmo inexistente. Isto aconteceu pois todas as políticas de reabilitação urbana assumidas desde os anos 1970 até início do século 21 eram muito protetoras dos inquilinos e das populações mais vulneráveis que viveram durante décadas no centro histórico. Para isso também contribui a lei do congelamento das rendas de 1948 e que manteve o valor das rendas pagas a um nível muito baixo.
Neste momento, tanto o Porto como Lisboa vivem um novo estágio de gentrificação em todo diferente do anterior, muito devido à explosão de diversas formas de alojamento turístico. Enquanto os indivíduos pioneiros continuam a influenciar a área, a gentrificação torna-se frequentemente acompanhada por agentes imobiliários de maior envergadura e a reabilitação urbana começa a afigurar-se como estratégia política e econômica prioritária para a revitalização do centro histórico.
Como resultado do aumento do volume de intervenções imobiliárias, as melhorias físicas e arquitetônicas tornam-se cada vez mais visíveis nesta fase. Consequentemente, os preços das casas nos bairros históricos começam a subir galopantemente. O processo de desalojamento expande-se para formas mais agressivas, à medida que os valores imobiliários do bairro também aumentam e o Estado aprova legislação facilitadora do despejo de habitantes e comerciantes e da iniciativa privada. As melhores propriedades habitacionais e comerciais mantidas tornam-se parte do mercado de classe média, à medida que os proprietários procuram tirar proveito da notoriedade reforçada da área, isso acaba por conduzir a um maior desalojamento.
Como começou este processo?
Esta mudança começou com uma virada neoliberal (neoliberal turn) nas políticas urbanas desde 2004, com a aprovação de uma série de pacotes de leis que foram surgindo sucessivamente, defendendo uma visão pró-mercado (...), favorecendo a iniciativa privada, as parcerias públicas-privadas e a competitividade no sector. Esta virada neoliberal culminou com a aprovação da Nova Lei do Arrendamento Urbano em 2012 (Nova Lei das Rendas, o NRAU – Novo Regime de Arrendamento Urbano) e que facilitou imensamente os despejos, tendo agravado o desalojamento e a segregação residencial.
Mais recentemente, a aprovação de uma Lei do Alojamento Local em 2014, permitiu simplificar o licenciamento de apartamentos do centro histórico para acomodar a função de alojamento turístico. Tal como noutras capitais europeias, em Lisboa, este tipo de estabelecimento tem sido considerado, cada vez, mais uma alternativa à oferta mais tradicional e “massiva” como os hotéis. A mudança nos hábitos dos hóspedes, que começaram a procurar estadias mais econômicas e “autênticas”, capazes de proporcionar novas experiências e um estilo de vida mais local, teve um grande impacto neste mercado. (...)
Simultaneamente, investidores que procuram a obtenção do Golden Visa [o visto de residência português] viram neste mercado uma oportunidade para obter rendimento nos seus ativos imobiliários. O governo português procedeu em 2012 à alteração da Lei da Imigração Portuguesa, uma legislação especial que simplifica a atribuição de autorização de residência a estrangeiros ricos que queiram investir em Portugal, tornando este país uma porta de entrada privilegiada na Europa para aqueles que pretendem usufruir de liberdade de circulação no Espaço Europeu.No dia 2 de Setembro de 2015 foram publicadas novas alterações aos procedimentos que permitem, através de investimento, a obtenção do visto denominado Golden Visa ou Visto Gold.
Com toda esta dinâmica, atualmente podemos assistir a um grande dinamismo na reabilitação de edifícios no centro histórico da cidade, o que contribuí para o aumento contínuo da oferta deste tipo de alojamento, mas ao mesmo tempo desalojando a população mais pobre já residente no centro histórico. Naturalmente que esta tendência se expande à atividade comercial, pois o comércio de proximidade e tradicional (ex. talho, mercearia, peixaria, padaria), de base à população local, não oferece, de longe, as mesmas oportunidades de acumulação de capital imobiliário, que o comércio moderno mais sofisticado mas apenas dirigido à procura turística (hamburguerias gourmet, lojas de souvenirs e recuerdos, etc)
Neste momento, todo este quadro legal e fiscal é, volto a dizer, desde o início deste século, responsável por esvaziar a habitação do seu estatuto de direito para ganhar o de mercadoria, à luz da turistificação. Pelo contrário, o poder público devia assumir um papel regulador e estabilizador do mercado imobiliário, que continua a seguir ao sabor dos grupos mais privilegiados, menosprezando os direitos da população e dos comerciantes locais.
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Qual o efeito disso no comércio?
(...) Não se respeitam (porque também não se conhecem) as capacidades de carga turística dos vários bairros do centro histórico, verificando-se sobrelotação de equipamentos, infraestruturas e transportes; o comércio tradicional e de proximidade (ex. mercearias, padarias, talho) está a desaparecer para dar origem a lojas gourmet, de souvenirs, ou apenas de oferta e procura turística. Este comércio é essencial para manter a qualidade de vida e os recursos da população local. Quando este tipo de comércio mais tradicional é expulso dos bairros acaba por ser uma “carta de intimidação” para os restantes habitantes, pois as pessoas mais pobres e com baixa mobilidade, deixam de conseguir abastecer-se no dia a dia, o que acaba por ser um convite para saírem. Esta é uma forma de desalojamento indireto, tão ou mais grave que a expulsão propriamente dita.
Depois há também um desenvolvimento macrocéfalo da economia local centrada no turismo, numa arriscada tendência de monofuncionalidade e hipertrofia da diversidade econômica presente em outros setores, como no comércio, pondo em perigo a resiliência do mercado de habitação e da estrutura comercial dos bairros.
(...) Também o aumento global do turismo urbano, algumas iniciativas de “retorno ao centro” de residentes, uma grande abertura para acomodar investimentos privados de vários tipos, os novos consumos (de arte e de produtos tradicionais revalorizados, por exemplo) e os novos usos (durante a ‘noite’, designadamente), têm contribuído significativamente para que seja possível falar-se de uma nova dinâmica, mesmo que coexistam na cidade situações diversas.
Têm-se investido milhões de euros em campanhas publicitárias que afirmam internacionalmente Lisboa como cidade europeia predileta para o “city-break”, reforçando a cidade enquanto lugar cosmopolita, rico de património e de dinamismo, sobretudo para jovens criativos de aspiração boêmia e investidores imobiliários. Daí a congratulação com diversos prêmios turísticos a nível internacional.
A expansão deste tipo de turismo urbano reside na conjugação de três elementos decisivos: o recurso a plataformas online como a Airbnb que permitem uma hiperescolha, bastante individualizada se pensarmos nas estadias organizadas via internet; o contínuo embaratecimento da mobilidade internacional, nomeadamente através das companhias aéreas low cost; e o crescimento de um desejo de cosmopolitismo entre as camadas mais instruídas, para o caso das viagens e estadas urbanas personificando objetivos de distinção social, que só a qualidade urbana da estadia e alojamento no centro histórico pode emprestar.
O que é a turistificação?
Não existe uma definição para turistificação. Digamos que é uma noção que se tem divulgado muito e que exprime a expansão significativa do turismo num território, quer do ponto de vista da oferta de serviços e equipamentos, incluindo alojamento turístico nas suas diversas modalidades, quer do ponto de vista da procura da cidade como destino turístico. Quando aplicado, o conceito de turistificação designa uma hiperespecialização da economia no setor do turismo.
Teria sido possível a reabilitação dos edifícios da velha Lisboa sem os converter em apartamentos turísticos?
Sabemos que a reabilitação urbana envolve quase sempre grandes investimentos que dificilmente podem ser suportados por uma só entidade, seja ela pública ou privada. (...) Agora o Estado tem, através de uma série de competências fiscais, burocráticas e administrativas, a capacidade de regular mediante políticas de turismo e de habitação o que se está a passar. Ao invés [disso], o Estado está a demitir-se da sua função e competência reguladora, deixando que o mercado de alojamento turístico e a livre iniciativa vigore de forma descontrolada, sem atender com conhecimento de causa e decisão esclarecida aos custos sociais que esta turistificação está a ter nos bairros históricos. Ao mesmo tempo que se deixa que o mercado desenvolva a oferta de apartamentos turísticos, devia-se igualmente através de políticas de incentivos ou isenções fiscais nos licenciamentos, por exemplo, estimular o mercado de arrendamento social ou de habitação a custos controlados, valorizando a função residencial e a possibilidade da classe média e outros grupos desfavorecidas possam beneficiar da cidade.
Pode o projeto “Lojas com História” ajudar na preservação dos bairros históricos de Lisboa?
No meu entendimento, programas como o de “Lojas com História” de proteção e valorização do comércio típico e tradicional do centro da cidade são uma condição importante para manter uma estrutura comercial sustentável e resiliente (aliás, importante fator de atratividade turística pela autenticidade que representa para o turista e visitante), mas não suficiente se não forem articulados com uma política de habitação justa que garanta o direito à cidade. Só por via da fixação da população nos bairros, valorizando a função de residência permanente e não a de alojamento turístico ou short-rental (alojamento de curta duração) estaremos a garantir uma procura constante que mantenha vivo o comércio local.
Há várias medidas que devem ser adotadas neste momento para mitigar os impactos de uma gentrificação pelo turismo: suspender a atribuição de licenças a hotéis e hostels até a elaboração de um estudo sobre os impactos do turismo no Porto, à semelhança de outras cidades e em permanente atualização, com o objectivo de definir os impactos do turismo e índices de capacidade de carga turística da cidade; realização de uma nova lei restritiva do alojamento local, à semelhança de outras cidades (Ex: Barcelona, Paris, Berlin, Nova Iorque, Londres, São Francisco); sensibilizar as associações de moradores para, nas respectivas assembleias de condomínios, implicarem formas de compromisso coletivo e consenso democrático que faça depender a criação de apartamentos para acomodação/alojamento turístico, de consenso unânime por parte de todos os moradores do prédio; reter na cidade, e sobretudo nas comunidades mais afetadas pela turistificação, uma parte significativa das mais-valias econômicas, criando canais de redistribuição dos proveitos/receitas geradas pelo turismo nos bairros, orientando-as, de forma transparente, para benefício das comunidades respectivas; entre outras.
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E que futuro das cidades terão com essa turistificação?
É difícil responder e fazer futurologia, pois estamos a entrar em terreno desconhecido. Parece-me que em certos sectores da cidade passámos o ponto de não retorno a nível do equilíbrio da economia e da sociedade locais. A verdade é que a turistificação, apesar de representar crescimento económico, retenção de investimento e criação de emprego (apesar de precário) está a assumir contornos verdadeiramente hegemónicos, tornando o centro histórico monofuncional e perigosamente descaracterizado. Sabemos que a hiperespecialização num sector e a monofuncionalidade não são características que qualifiquem um território e contribuam para a sua resiliência face a eventuais mudanças e ameaças externas que surjam do contexto internacional. Por isso, penso que a cidade se encontra mais vulnerável a flutuações económicas no sector e menos resiliente. Por outro lado, a descaracterização dos bairros históricos e a sua disneyficação destroem precisamente a autenticidade, a memória e a identidade das comunidades, condições que, justamente, são as que constituem atrativo turístico para o visitante e turista. Ao fim ao cabo, parece que esta Lisboa gentrificada é menos cidade, pois deixa de ser cosmopolita e plural, para ser mais criativamente mercantil, apenas aburguesada e menos pelo direito à cidade.
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