Uma guinchada de freios, o barulhão do metal amassado e uma lambreta de três rodas, movida à bateria, lotada de encomendas ainda não entregues tomba depois de bater em um carro. O condutor se levanta enquanto o motorista sai do carro feito doido, gritando e apontando para as luzes do farol destruídas.
É mais uma desavença na guerra de classes ferrenha que se instaurou nas ruas de Pequim. O número cada vez maior de carros particulares destoa dos milhões de moradores que usam bicicletas elétricas de duas ou três rodas. O conflito gerou revolta com a desigualdade na China urbana, que joga os motoristas, mais abastados, contra os condutores, mais humildes, que precisam trabalhar como entregadores para ganhar a vida. “Somos bodes expiatórios. Vivem dizendo que as bicicletas elétricas são assassinas no trânsito, mas quem mata mesmo são os carros”, desabafa Liu Xiaoyan, mensageiro que testemunhou o acidente descrito acima em um cruzamento da capital chinesa.
A proliferação do veículo leve é resultado da demanda de entrega de produtos adquiridos pela internet – e não só Pequim, mas várias outras cidades do país já estão se movimentando para controlar seu número, algumas chegando até a proibi-las. As medidas são bem-recebidas pelos motoristas, loucos com os ciclistas que furam o sinal vermelho e costuram entre as faixas, quase sempre de olho no smartphone preso no guidão. Os pedestres também reclamam que a buzina é muito alta e as bicicletas invadem as calçadas.
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“Nunca achei muito perigoso pedalar em Pequim, mas agora tem uma multidão de entregadores de comida com pouquíssimo treinamento. Em dois anos fui atingido duas vezes, uma por uma bicicleta elétrica, outra, por uma moto; as duas na contramão”, conta Robert Earley, empresário canadense que batalha por iniciativas “limpas” de transporte na capital da China.
Entretanto, os donos dos veículos e representantes da indústria afirmam que as bicicletas estão levando a culpa injustamente por problemas causados pelo excesso de carros. E não deixam de ter razão, pois na cidade é comum ver as ciclovias lotadas de automóveis e as calçadas sendo usadas como estacionamento sem que nada seja feito.
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“Se a bicicleta elétrica não existisse, os custos de logística do comércio eletrônico aumentariam. Seria muito difícil crescer com a mesma rapidez atual”, afirma Guo Jinzhi, presidente da Associação do Setor de Bicicletas de Pequim.
As ruas de Pequim nem são as mais confusas da China, mas as desavenças ali são notáveis. Desde os tempos antigos, as ruas da capital sempre foram um reflexo geométrico organizado de controle. Há décadas as vias são divididas entre as principais, para os carros (em número menor) e as transversais ou secundárias, para acomodar o mar de bicicletas.
Entretanto, pedalar nas maiores avenidas hoje em dia lembra muito uma cena de Mad Max: Estrada da Fúria em câmera lenta – uma sucessão interminável de carros, motos, bicicletas a pedal e elétricas, lambretas, skatistas, microcarros à bateria, Segways e pedestres que dependem da força bruta dos números para atravessar os cruzamentos, mesmo que o semáforo esteja no vermelho.
As cidades chinesas eram muito mais tranquilas quando a primazia era das magrelas. A versão elétrica começou a ser vendida em 1996, mas continuou sendo novidade em um mar de bicicletas tradicionais.
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Pequim agora conta com 5,6 milhões de veículos motorizados, mesmo com as restrições impostas a novas vendas. São 2,5 milhões de bicicletas elétricas, cujas vendas anuais chegam a 300 mil, como confirma Guo Jinzhi. Há também milhares de triciclos elétricos sem registro, embora o governo tenha tentado aboli-los de vez em 2014. “De uns anos para cá, elas se tornaram o principal fator de urbanização na China e principal meio de transporte para os recém-empregados e trabalhadores do interior”, explica Ni Jie, presidente da Veículos Elétricos Luyuan, localizada no leste do país e defensor ferrenho do setor.
As bicicletas custam apenas algumas centenas de dólares, não exigem habilitação e apenas alguns proprietários se dão ao trabalho de licenciá-las. “É uma verdadeira ameaça. É rápida, está sempre na direção errada e é silenciosa”, desabafa o taxista Xing Dayong, que despejou uma enxurrada de palavrões para o ciclista que desviou na frente de seu carro.
De acordo com a OMS, cerca de 260 mil pessoas morrem no trânsito da China todos os anos, sendo que 60 por cento desse número é de pedestres, ciclistas ou pessoas dirigindo motos.
O governo central vive prometendo fazer algo a respeito do veículo, mas parece travado pela indecisão. Os padrões que o regem foram introduzidos em 1999, mas a maior parte dos modelos novos viola os limites de velocidade, peso e tamanho da bateria.
Por lei, ela não pode ultrapassar os 21 km/h e pesar apenas 41 kg, mas muitas são bem mais pesadas e os modelos especiais chegam a 48 km/h, segundo o teste feito recentemente por um jornal pequinês. O governo nunca definiu diretrizes para os triciclos, maiores e mais velozes.
Assim, as próprias cidades estão agindo: a prefeitura de Pequim, por exemplo, revelou em março que as bicicletas elétricas se envolveram em 113 mortes em 2015, ou seja, doze por cento das mortes registradas no trânsito, com 21.423 feridos, 37 por cento do volume total.
Em abril, a capital proibiu a circulação do meio de transporte, como também dos triciclos, em dez trechos, incluindo partes da Avenida Chang’an, a principal da metrópole. Donos e fabricantes temem que a cidade copie outras que impuseram restrições mais radicais.
“Não há como controlá-las. Se você tentar restringir a forma como a pessoa ganha seu pão, vai descobrir que a cidade inteira depende dos mensageiros para receber comida, água e tudo mais de que necessitam”, contata Wu Ziguo, migrante que conduz um triciclo para entregar garrafões de água em Pequim.
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