Em outubro próximo, os estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) se reunem no Equador para definir a nova “Agenda Urbana” mundial. Uma coisa é certa: velhos problemas persistem (e ganham escala), e novos surgem. Nas próximas décadas, os centros urbanos devem concentrar ainda mais gente. Não há soluções mágicas. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo comentam cinco passos e/ou desafios na construção de cidades mais inclusivas, com um pé na tecnologia e outro na dimensão humana do planejamento.
1.Cidades compartilhadas: regulamentar é preciso
2.Soluções tecnológicas exigem pé no chão
3.“Dados abertos” permite ao cidadão virar “resolvedor” de problemas
4.Escala humana: arquitetês para cidade para pessoas
5.Era da crise migratória não acabará tão cedo e exige que cidades sejam acolhedoras
1. Cidades compartilhadas: regulamentar é preciso
Duas vezes maiores do que eram nos anos 1990, as cidades concentram cada vez mais gente, em uma terra cada vez mais cara. A conta não fecha. Sobra pouco espaço para resolver problemas de grande escala, como o déficit de moradia, a falta de áreas de lazer e os congestionamentos. Uma alternativa é a chamada economia compartilhada. Plataformas como Uber e Airbnb transformam o carro e a casa das pessoas em seus próprios negócios. Cria emprego, mas compete com setores tradicionais que também gera postos de trabalho e recolhem impostos. O que torna urgente a regulamentação destes setores. “O desafio é fazer uma tributação justa, que não gere concorrência desleal, mas que as novas tecnologias não percam seu apelo, que muitas vezes traz uma forma nova e melhor de fazer o trabalho”, resume Jonathas Gabardo, sócio da consultoria PwC Brasil. A regulamentação também cumpre função urbanística. Da mesma forma que a construção civil segue regras para uso do solo, estes setores devem seguir normas que orientam o desenvolvimento urbano. Um aplicativo de transporte deve se encaixar na política de mobilidade, por exemplo. E a tendência das cidades é priorizar transportes públicos e não motorizados. Como as tecnologias caminham à frente do legislador, o desafio da regulação deve voltar a surgir, no futuro. “Carros autônomos, por exemplo, o ideal é que sejam compartilhados. A ideia de um carro autônomo próprio é distópica”, opina Diego Canales, do World Resources Institute (WRI).
Novos mercados também podem ajudar a impulsionar receitas. Ainda que as cidades concentrem 80% do PIB mundial, o déficit de investimentos é enorme. Só em infraestrutura, a ONU estima que seja necessário um gasto de US$ 3,16 trilhões ao ano, até 2030. No Brasil, a reforma tributária está na pauta. O presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBPT), João Eloi Olenike, defende um sistema que diminua os gastos do governo federal, aumente a fatia paga diretamente às cidades, e que o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) seja distribuído pelo número de habitantes dos municípios, e não pelo ICMS. Desta forma, municípios pequenos que sediam grandes indústrias, por exemplo, receberiam um pouco menos. E cidades grandes, sem infraestrutura, mais. As cidades também devem buscar formas inovadoras de aumentar receitas e diminuir despesas, sempre com foco em ofertar melhores serviços. A tecnologia pode ajudar. Transferir todos os serviços para um portal na internet economizou 170 milhões de euros à prefeitura de Valencia, na Espanha, só no ano passado. No Brasil, a substituição das lâmpadas de mercúrio por LED, nos postes públicos, representaria uma economia de R$ 440 milhões ao ano só em custo energético. O investimento em dados abertos e participação popular também pode gerar mais recursos, à medida em que reforça a confiança no poder público e aumenta a adimplência do cidadão.
2. Soluções tecnológicas exigem pé no chão
Se sobram problemas, transbordam soluções tecnológicas que prometem milagres no espaço urbano. Do bueiro que alerta sozinho quando vai transbordar ao poste que aciona a polícia quando detecta criminalidade. Tem de tudo. Mas é preciso tomar cuidado com “discursos de marketing” que se apresentam como “soluções”, alerta o pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Pedro Augusto Francisco. Estes produtos têm custos. E podem ser adquiridos pelas prefeituras, desde que representem uma “decisão coletiva”. “Caso contrário, corre o risco de entregar para o ente privado a capacidade e a responsabilidade de resolver um problema que é público”. Mais do que priorizar gastos, é uma questão de definir se aquela resposta atende a um problema real da cidade. Por exemplo: usar dados georreferenciados para combater a criminalidade em áreas violentas. Ótima ideia. Mas pode ser um problema, se os motivos que levaram o indivíduo a cometer o crime forem ignorados. Vira uma bola de neve: a violência se transfere para outra região persiste um problema que a tecnologia, sozinha, não tem como resolver.
3. “Dados abertos” permite ao cidadão virar “resolvedor” de problemas
Termo da moda, o “big data” – literalmente, “dados grandes” – nada mais é do que a possibilidade de processar uma quantidade gigantesca de dados de forma muito rápida. Na indústria da informação, é o que sustenta as propagandas que se inspiram nas conversas de email ou bate-papo, por exemplo. Nas cidades, onde sobram dados e falta gente para processá-los, é uma avenida de oportunidades. A política de “dados abertos” é o ponto de partida. O Brasil ainda vive sua pré-história neste quesito. Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife instituiram políticas sobre o tema, impulsionadas pelas leis da Transparência e de Acesso à Informação, de 2009 e 2011, respectivamente.Mas nem tudo que está disponível tem utilidade. Por isso os dados devem ter licenças e formatos livres, defende Diego Canales, pesquisador de dados da WRI. Isto permite cruzar dados de diferentes cidades com uma programação relativamente simples. Do lado “de lá”, as administrações municipais têm que estar abertas para sugestões que nascem na comunidade. Incorporar sugestões. Mas também novos olhares. A experiência das professoras Keiko Fonseca, Nádia Kozievitch e Tatiana Gadda, da UTFPR, mostra isso. Foi só no final de 2014, quando Curitiba regulamentou sua política de dados abertos, que o grupo de pesquisa em Cidades Inteligentes em que elas trabalham passou a ter acesso de forma sistematizada aos dados da prefeitura. Tempo curto, para resultados acadêmicos conclusivos. Mas o olhar de quem vive e estuda a cidade gera feedbacks constantes. E mudam a cultura dos órgãos públicos, que veem aplicabilidade nos dados que reúnem. E descobrem que há gente interessada e disposta a encontrar soluções para a cidade.
Aqui o desafio é não repetir Brasília. Para os defensores da chamada escala humana, a capital federal e outros conjuntos modernistas representam o que de pior há na forma de projetar e pensar as cidades: é tudo muito bonito visto da janela de um avião, mas frio e distante para quem olha da rua. Isso talvez tenha ocorrido porque na arquitetura pós Segunda Guerra Mundial a integração não apenas aparente entre a fachada dos edifícios e as ruas não foi encarada como um aspecto fundamental de um bom projeto. E nessa integração está presente um elemento de difícil tangibilidade: a sensação de acolhimento. Um jeito mais fácil de se reparar nisso é se ver como pedestre, ou melhor, caminhante. Uma cidade que é boa para motoristas mas má para pedestres não é uma boa cidade. “O mais grave desse processo é que presenciamos desastres em câmara lenta e que nos são imperceptíveis por ocorrerem aos poucos(...). Como seria a implantação do ônibus biarticulado na Curitiba dos anos 1970? Mesmo que fosse necessário, seria impensável”, observa o arquiteto e professor da UFPR e do programa de pós-graduação em Gestão Urbana da PUCPR, Clovis Ultramari.
Quanto mais viva e aberta à rua uma fachada de um prédio for ou mesmo quanto mais conexão entre vizinhos e pedestres uma rua puder promover, melhor. “O planejamento, o projeto ou desenho urbano, pode colaborar nesse sentido. Mas apenas colaborar, mitigar, reduzir os impactos de uma demanda que é muito grande. Para além disso, (...) acredito na tecnologia. Ela poderá nos trazer algo novo, reduzindo locomoções e estruturas, numa espécie de ‘minituarização’ das coisas da cidade. Isso só será confirmado com o tempo.”
Pensar nas pessoas também significa resolver pequenos obstáculos, problemas, de maneira simples. “Em algum momento a gente tem que rever o que as cidades querem no seu desenvolvimento, e aí quando a gente começa a investir em pessoas, a gente começa a ver que o custo tende a ser menor do que o custo da grande infraestrutura do Estado totalitário, controlador, do Estado do milagre econômico dos anos 1970, que é outra relação”, observa o Gustavo Partezani, diretor de Desenvolvimento da SP Urbanismo, o Ippuc de São Paulo, referindo-se principalmente às medidas simples adotadas para melhorar a segurança dos ciclistas e pedestres, como a pintura de faixas exclusivas e espaços de travessia na capital paulista.
Como exemplo dessa tentativa de manter a escala humana, Ultramari fala de dois símbolos de Curitiba: o Parque Barigui e o sistema de transporte. O primeiro foi inaugurado nos 1970, mas a administração se viu obrigada a incorporar mais estruturas em sua área. No segundo caso, primeiro veio o expresso, depois o articulado, o biarticulado e agora se fala em metrô. “No desenho dessas intervenções é possível mitigar o impacto de algo [gigantesco] que não tem mais a escala humana, sem jamais se abrir mão delas.”
5. Era da crise migratória não acabará tão cedo e exige que cidades sejam acolhedoras
Das 160 mil pessoas que os países europeus se comprometeram a receber em setembro de 2015, só 1,6 mil foram abrigadas até o momento. No total, apenas neste ano, mais de 208 mil migrantes e refugiados chegaram a Europa passando pelo Mediterrâneo, e mais de 2,8 mil morreram ou estão desaparecidos, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur). A maioria (157.119) é de sírios, afegãos e iraquianos que chegaram à Grécia passando pela Turquia. Outros quase 50 mil, sobretudo pessoas da África subsaariana, entraram na Itália vindos da costa da Líbia.
Ainda nessa semana, segundo a BBC Brasil, o governo brasileiro suspendeu negociações que mantinha com a União Europeia para receber famílias desalojados pela guerra civil na Síria. Mas o que ocorre na Europa não é apenas um problema da Europa. Mudanças climáticas e conflitos farão com que mais pessoas tenham de deixar seus países, em busca de um novo lar. Historicamente, o ser humano sempre buscou a concentração e isso se reflete na urbanização crescente. Enquanto em 1995 havia 22 grandes cidades e 14 megacidades no mundo, em 2015 esse número chegou a 44 e 29, respectivamente. A maior parte das megacidades está localizada em países em desenvolvimento, tendência que deve continuar já que muitas cidades de Ásia, América Latina e África devem se tornar megacidades até 2030. Mas se as cidades já têm dificuldades em reconhecer e acolher sua diversidade inata imagina o impacto das culturas estrangeiras nesse caldeirão chamado espaço urbano. Será que São Paulo, por exemplo, que se vangloria por ter sido ou ser “a maior cidade” árabe, japonesa, italiana e outras tantas origens no Brasil, também está preparada para ser a maior cidade haitiana, angolana ou bolivariana no país?
Não à toa, a nova Agenda Urbana que a ONU está construindo com seus países-membros, assim como os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que substituíram os Objetivos do Milênio (ODM) a partir deste ano de 2016, têm um foco principal: o combate à desigualdade e à pobreza. Em outras palavras, o modelo de urbanização vivido até agora falhou – a proporção que o zika vírus tomou entre 2015 e 2016 é exemplo disso –, principalmente ao não permitir o direito à cidade de forma irrestrita à população (homens e mulheres, adultos e crianças, brancos e negros, e assim por diante).
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